IGNORÂNCIA

IGNORÂNCIA

Maria Júlia era uma menina que vivia perambulando pelo nosso bairro, e todos a conheciam como “ Zula, a bobinha”. Quer fizesse sol, chuva ou frio, lá estava ela, sempre na rua, suja e maltrapilha, com o nariz escorrendo e aquele rostinho fragilizado a esperar sabe-se lá o que da vida. Onde quer que achasse um portão aberto, ela entrava, postava-se em frente a porta da casa e ali ficava até que lhe dessem um prato de comida.. Nada falava e nada exigia, e de vez enquanto o esboço de um sorriso transparecia em seu rosto ao ver a alegria das crianças que brincavam felizes.

Tinha pai e tinha mãe, mas de que lhe adiantava? Nem lhe enxergavam no meio daquela turminha onde o alimento era escasso e o carinho não existia. O pai trabalhava feito louco e se desdobrava em horas extras, mas mesmo assim o salário era pouco, para saciar aquela prole. A mãe, que poderia estar ajudando, mais parecia um anciã em seus 45 anos de vida e 10 filhos, doente, envelhecida e alquebrada nada mais fazia a não ser dormir. Os filhos tão logo aprendiam a correr, também aprendiam que a rua era o melhor lugar para a barriga vazia e perambulavam pelos bairros da periferia.

E assim, Zula entrou para a adolescência e foi ficando mocinha. As pessoas mais compreensivas e generosas do bairro, ( incluindo minha mãe), colocavam-na no banho e davam-lhe uma muda de roupa usada para trocar, o que para ela, era um presente dos deuses e a felicidade transparecia em seu olhar. Ninguém sabia porque ela não falava, soltava a voz, mas só para dizer entre dentes: “ sim e não, sim e não”. Só aparecia em sua casa para dormir, isto quando aparecia, pois a maior parte das vezes ela dormia no banco da praça ou nos degraus da igreja para indignação das beatas , que tanto se incomodavam mas nada faziam para melhorar a vida daquela pobre criatura ambulante.

Um dia, Zula apareceu doente e vomitando. As beatas ficaram com os cabelos em pé, e se ela estivesse grávida? Uma delas, banhou Zula trocou-a e a levou a um médico, e de fato, estava grávida. O alarido do bairro foi geral pois todas as comadres a conheciam e a noticia se alastrou em questão de minutos. Quem seria o bastardo abusante? E por mais que perguntassem a Zula, ela nada respondia, era de uma ignorância total. Mas que esperar de uma menina de 13 anos, bobinha e analfabeta que jamais teve conhecimento das regras básicas da vida e das maldades que proliferavam?

Havia tantos culpados...

O médico, ciente da vida que a menina levava, e de todos os problemas que poderiam surgir com uma criança à tiracolo, prontificou-se a fazer um aborto. Mas as beatas reagiram de modo espetacular, e se prontificaram a cuidar da menina, na intenção de salvar uma alma de Deus. E assim, Zula foi levando a vida e a barriga para frente. Comia e dormia aqui e ali, mas ninguém a queria definitivamente. Quando chegou o dia do BB nascer, alguém a levou para o hospital e esqueceu-a. E ela teve o BB, um bonito e viçoso menino, que tão logo foi colocado sem seus braços, ela agarrava e enchia de beijos numa euforia quase louca, como se fora o brinquedo que ela jamais tivera .Quando teve alta, ninguém apareceu para ajudá-la, nem sequer um parente. A direção do hospital achou por bem, ficar com o BB para ser adotado por alguém que garantisse um futuro promissor para àquele linda e adorável criança que de nada tinha culpa.

À tarde, colocaram-na chorando para fora do hospital, mas ela, sem o seu precioso fardo, não foi embora. Ficou ali, rondando o hospital feito um cachorrinho acuado. E veio a noite, não se sabe como ela conseguiu burlar a vigilância e entrar no hospital. Do mesmo modo, conseguiu entrar no berçário, e na semi-claridade, pegar o BB que julgava ser seu, pois “Mãe nunca se engana”, e sair de mansinho, com o precioso fardo nos braços.

Correu para fora feliz da vida com seu filho quentinho e seguro em seus braços. Foi então que ouviu a balburdia das enfermeiras alertando os guardas, que imediatamente correram atrás dela. Ela correu mais ainda, frágil e fraca como estava, tropeçou no meio da rua e estatelou-se no meio do asfalto que imediatamente se tingiu de rubro, pois um carro que passava em alta velocidade não pode frear em tempo e matou-a instantaneamente. O BB, arremessado ao longe, bateu a cabecinha no asfalto e também morreu. Imediatamente juntou-se uma multidão de curiosos, e logo chegou a mídia e autoridades para cobrir e divulgar a tragédia. No outro dia, Zula que enquanto viva, era só uma bobinha, virou manchete na primeira página dos jornais, mas a verdade, da verdade da vida de uma garota indigente e pobre, jamais foi dita.

E só assim, a pequena Zula subiu para Deus com o seu preciosos fardo e enfim, descansou.

Moral: O que Deus une ninguém separa.