NOITES DE MARFIM (do livro OS CINCO FELIZES, Ed. Pakatatu, 2009, Josette Lassance)

A cor da vitrola com seu o alfabeto negro tocava twist, Piol ao chegar tocara em seu cabelo coque, 1966, Iracema se espremia na poltrona cáqui e experimentava seu novo olhar. Os copos de uísque tinham desenhos de cartas de baralho, Piol bebeu dois deles com gelo, Iracema abria um sorriso com seu sinal de carne próximo à boca ela se enchia de charme e piou a beijava.

A fotografia de piol no álbum manchado reserva um declinar, o sorriso de um fragmento, não lembro de sequer algum detalhe e me inspiro em alguns vácuos de memória ou de sutilezas para criar uma sinopse, lembro-me, sim todas as noites eram de sábado, dias em que meu pai ficava em casa conversando com os amigos.

A vitrola era uma grande caixa de música, seu único eixo a fazia girar um disco negro, repleto de nervuras, rotação 45, o tempo de cada música, de onde um homem pequeno ou uma pequena mulher cantava dentro da caixa de som.

O twist saía fino, sem sequer alguma letra daquele alfabeto imperceptível, não compreenderia modo algum senão ouvi-la tocar o que completamente desconhecia, mas eram sensações, palimpsestos nos quais não possuímos conteúdos de memória precisa.

Iracema dava gargalhadas após o quinto copo então se beijavam, a madrugada se expandia até os limites do horto, na Mundurucus, 2144, a sala continha um abajur trifásico, três bocas de luz amarela, sábado era sintomático, para mim sintonizava harmonia, blues e ópio, twist e uísque, rock e gelo, a pedra de uma cidade entorpecida, os dejetos de um modismo já decadente, art décor desfalecido, a imitação constante da província

A rua recém asfaltada havia mudado de lugar, ou de ordem, a via antes expressava sua mão direita invertia o fluxo, o influxo onde os jeeps e gordinis modificariam seus hábitos, agora os enxergava, podia ver os chauffers exibindo seus bigodes densos de pais de família abastados, além do asfalto, a rua negra enfeitava-se de pratos suspensos nos postes de ferro, havia um charme de cidade adolescendo, Belém era sequer uma franquia, mas havia toques sutis de afrancesamento herdados da belle époque.

Mas que pode doer mais, além do passado? Era imitar o estrangeiro, a floresta vestida de anjo burguês, a reinstalação da rede elétrica, a modernização das construções, bangalôs, prédios com azulejos, cozinhas de TV, abajures incolores, laquê nos cabelos...

E Iracema no sofá recebendo os beijos de Piol com sotaque italiano e seu bigode afilado, penteado, impecável, chapéu panamá, terno de linho, vaselina nos cabelos.

Íamos dormir e Piol continuava beijando Iracema passando as mãos em suas coxas grossas, depois se deitavam nos tapetes, tiravam a roupa e faziam vazar todas as palavras de amor que podiam, embaixo da última luz do pequeno abajur sombrio num final de sala numa mesinha triangular onde uma grande eletrola tocava para a noite que havia acabado, onde o charme eram as noites de sábado, e esse era o sabor, de azeitonas e queijos no prato azul de porcelana inglesa, herança de avós, porque a casa era uma espécie de sebo chinês, herança de antepassados.

As flores brancas renasciam nos vasos, dia a pós dia em que minha mãe retirava as merdas das moscas, os bibelôs (as andorinhas nas paredes, pareciam cegas porque tinham o corpo inteiro de louça e os olhares de pedra, pintados com um negro fosco), um pequeno paredão envernizado de tábua corrida, metade tijolo, metade madeira, a casa não parecia de verdade, formava um corpo de um centauro.

Mas o charme era a parte de pedra, o lado burguês da casa, as janelas, janelões, uma tranca de aço em forma de coração, a porta com uma portinhola que servia de olho mágico, e dentro dessa pequena porta uma espécie de jaula em miniatura para que ninguém ultrapasse esse limite.

Um vizinho excêntrico criava um zoológico, de lá sempre vinham as capivaras roer as fibras das roupas de algodão estendidas no varal do quintal, ou a chipanzé Maroca, destampar as panelas na cozinha.

Hora ou outra um ônibus passava, com sua lataria desconjuntada e seus motores a diesel expostos, o motor salientava-se, meu pai tinha um williys 1959. Trabalhava como desenhista na prefeitura e fazia tour com seu Bezerra, o homem do bigode, que não fazia oura coisa senão apertar meu nariz com força, e eu odiava, os adultos pensam que as crianças são acéfalas, por isso falam bobagens com elas, trocam falas retardadas, fazem careta, mas jamais as levam a sério, desde o dia em que mostrei que meu pai era meu pai, mas era sempre levado pelo mesmo homem, que sempre nos roubava, nos levava o tempo em que podíamos brincar, as farras, sempre as farras dos homens adultos...

E as noites de sábado eram sagradas, não por nada, mas por motivos de prazer que os levaria a crer que poderiam ser livres ao escutar a eletrola quase a noite inteira e só iria parar quando o Piol fizesse o sinal que iria trepar com Iracema em sua sala enceradíssima.

Não recordo as noites de chuva, noites blecautes dentro de mim, afinal para que lembrar das noites tristes de chuva, nessas noites eu dormia presa a um lençol de algodão grosso e tinha fantasias de fantasmas, um a um passando ao lado de meu mosquiteiro, o pipo sendo deglutido por minha boca fria.

Barulho de sapos e grilos embaixo do som do telhado, a calha expulsando seus excessos, a enxurrada das folhas das mangueiras, o horto vazio de flores, havia um emaranhado de sons noturnos e o cheiro de limo pesando nas bocas de lobo.

Essas noites de sábado foram ficando vazias, sem a luz amarela na luminária trifásica verde de alumínio pintado, eram noites sem uísque ou qualquer transa bem feita de Piol e Iracema, sem as azeitonas e o prato azul, sem jazz, ou qualquer twist de homem pequeno sendo imaginado a tocar o saxofone dentro da caixa de eletrola envernizada. Noite em que dormir cedo seria o único costume a seguir, grosso modo de uma forma aconchegada com o cheiro do vestido de minha mãe.

Não havia escola, ou qualquer limite de horário para acordar no domingo, mas a chuva ia tomando conta dos lugares, e o mofo se alojando nos móveis, Piol nem passava na rua, os motoristas com seus carros de porte foram ficando escassos, minha memória turva de criança a repetir sensações uma dentro da outra numa rotina de retalhos, a travessia de um ciclo se fechando, o único vínculo do charme das noites de sábado foram ficando cada vez mais imprecisas até nos mudarmos para um lugar distante da Batista Campos, em que eu não voltaria mais a sentir, todas as sensações dos sábados repetidos.

De Piol, apenas a fotografia do álbum manchado em que vez em quando abro, em preto e branco num sorriso cínico de um homem charmoso, ele e seu navio.

Iracema, ainda a vira algum dia, algumas vezes, atravessando algumas ruas chamando os homens para trepar, enlouquecida, com seu chapéu de cabelos em coque, o sinal de carne em sua boca velha, que durante muitos anos mais tarde ainda enlouquecia os homens com sua voz charmosa em uma rádio na cidade. Papai não recordo, não olhava para ele, prestava atenção na eletrola e seu homem pequeno tocando jazz, mamãe, idem, talvez nem tivesse cortado as azeitonas naqueles sábados charmosos, corrigia as provas de seus alunos deitada nas costas de um travesseiro em sua cama.

Meus irmãos, sequer lembram de alguma fagulha desses acontecimentos, eu era a única acordada das noites de sábado, e ainda sinto o cheiro do uísque barato, mas, com sotaque das noites mais charmosas do mundo, com o jazz no sax de um homem pequeno, dentro da grande caixa de som da vitrola da sala.