A menina, a boneca e o futuro...

Era madrugada, mais ou menos 05:00horas, todos já estavam acordados, quatro crianças entre 6 e 12 anos, o pai,( que organizava a moringa de água) e a mãe, que reavivava o fogo de lenha com um abanador velho. As chamas, a cada ventarola que passava, crepitavam aumentando a claridade na pequena cozinha. Na panela, a macaxeira cozinhava, os meninos, já vestidos, aguardavam o “quebra-jejum” para depois seguirem para a roça, o desafio na fazenda de cacau era encher 8.000 sacos de terra para a plantação de cacau, toda a família estava envolvida no serviço, não sabiam quantos dias ainda teriam pela frente até completar a quantidade de sacos cheios.

Depois do café tomado sem leite, mas acompanhado da macaxeira cozida, ficaram aguardando o patrão chegar no carro que os levaria até o local do trabalho, a família iria completa. A mais nova, Mariinha que tinha somente seis anos também fazia parte dos trabalhadores. Ninguém poderia ficar fora do serviço, o verão nesse ano estava muito forte, o milho plantado não iria render muita coisa, qualquer trabalho a mais significava comida na mesa, o pai vivia falando isso. Quando chegou o dono das terras o dia já estava clareando, Mariinha foi a primeira a entrar no veículo, levava consigo um saco sujo com uma boneca sem braços e sem olhos, um pano enrolado à mesma, talvez houvesse um tempinho para brincar, quem sabe.

Ao chegarem ao descampado, outras famílias já estavam no local, todos em busca de ganhar um dinheiro a mais. Começaram a encher os sacos pretos um a um... Mariinha tanto colocava terra dentro do saco quanto fora, vez por outra passava as mãos nos cabelos que teimavam em cair na testa já com algumas gotas de suor, a terra molhada misturava-se à pele úmida fazendo uma pintura de lama no seu rosto, que depois escorria pela roupa, mas a menina nem ligava, continuava a fazer o serviço compenetrada, como gente grande.

Havia um motivo incentivador para aquelas crianças estarem ali, seu pai prometera comprar botinas para os garotos e um sapatinho para a menina caso conseguissem encher de terra uma boa quantidade de sacos, portanto, as crianças pareciam brincar enquanto trabalhavam no sol quente. A esperança as impulsionava.

A boneca da menina fora colocada deitada no tronco de uma árvore e, enrolada no pedaço de pano, aguardava sem pressa o instante em que sua dona a colocaria nos braços. Em certo momento, Mariinha correu até ela e falou assim: -Chora não, nenen, mamãe ta trabalhando para comprar sapatinho pra você. Falava e ninava a boneca sem olhos e sem braços. Depois de um tempo voltou ao trabalho, tinha muitos sacos para encher, só parando para tomar água.

Na hora do almoço todos sentaram no chão, em círculo, a mãe desatou o nó do pano de prato que envolvia uma bacia com farofa de ovo, deu uma colher para cada um dos membros da família e comeram juntos na mesma vasilha, beberam água da moringa e retornaram ao trabalho.

Assim o dia passou, a tarde caiu, as crianças já estavam cansadas, colocavam a terra bem devagar, o sono estava querendo dominá-los. Nisso, o dono da fazendo chegou. Parou o seu carro no terreiro, contemplou de longe aquele monte de sacos cheios de terra, junto com ele, trouxe a sua esposa, Regina. Morena linda, alta, cabelos longos, vestida com uma roupa esvoaçante, porém, uma mulher simples de sorriso nos lábios. Ela gostava de acompanhá-lo sempre que possível. Ao descer do carro seus olhos foram atraídos pelos da garotinha que olhava para ela com um meio sorriso tímido esperando alguma reação daquela mulher tão elegante. Regina sorriu largamente para ela que enfim, retribuiu gargalhando, e, saltitando foi pegar sua boneca sem braços e olhos que estava deitada no tronca da mangueira, colocou-a no colo, ninou e ficou olhando para a mulher do patrão do seu pai. Regina observou que as suas roupas estavam sujas de barro, seus cabelos desalinhados, mas viu através daqueles olhos, pureza, esperança, alegria, não viu tristeza, parecia que a menininha apenas se divertia, apesar do cansaço.

Seu marido então chamou os adultos para efetuar o pagamento do dia, as crianças ficaram ao redor deles na esperança de que tivessem conseguido ganhar um bom dinheiro para tirar um pouco e guardar para comprar as botinas e o sapatinho da menina. O pai recebeu a parte que lhe cabia, fez os cálculos do que tinha que comprar e disse aos filhos: - Não vai ser possível guardar nenhum trocado do dinheiro dessa vez, tenho outras coisas mais necessárias pra comprar, quem sabe amanhã...

As crianças abaixaram as cabeças, ficaram tristes, mas não retrucaram, o mais velho disse: amanhã vamos trabalhar com mais vontade, quem sabe a gente não enche mais sacos de terra e poderemos guardar um pouco para os sapatos. Todos entraram no carro do patrão e seguiram para casa. Ao chegar lá, a menininha já dormia agarrada à boneca, sua companheira, entraram em casa para comer alguma coisa e dormir, no outro dia tinha mais serviço, graças a Deus. Os fazendeiros se despediram dos colonos e saíram de carro.

Regina ficou com o coração na mão, queria interferir, doar logo as botinas e o sapatinho para a menininha, mas ao falar com o seu marido, este disse- Também me cortou o coração ouvir do pai que não seria possível guardar nada para os sapatos, mas não podemos interferir, de repente, ao doar nesse momento o objeto dos sonhos das crianças, poderemos atrapalhar a criação desse pai, em outra oportunidade qualquer, poderemos sim, comprar roupas, calçados e brinquedos para todos eles, não agora, o pai os mantém unidos e trabalhando do jeito dele, é a forma de educar seus filhos.

Regina ficou muito triste, aquela menininha em especial mexeu com o seu coração, lembrou da sua história que não fora tão diferente. Criada em um lar simples, com 10 anos de idade, estudava pela manhã e à tarde, vendia lanche que a sua mãe fazia, não tinha muito tempo para brincar, precisava ajudar em casa. Estudou, cresceu e um dia conheceu esse que hoje é o seu marido. Os dois não possuíam bens, ele começara a trabalhar desde criança para ajudar seus pais, ambos tinham determinação e faziam tudo em comum acordo. Tiveram filhos maravilhosos, prosperaram e hoje, são donos de várias fazendas, porém, jamais esqueceram a humildade, o amor ao próximo e o reconhecimento de que tudo é possível quando permanecem os sonhos dentro de cada um.

Um dia, aquelas crianças também poderão contar as suas histórias, Mariinha se recordará do tempo em que o dinheiro era escasso, mas havia amor em sua família. Talvez guarde como lembrança a boneca sem braços e olhos, não para lembrá-la da falta de uma novinha, mas para repensar o quanto foi feliz, apesar de...

Felicidade é um estado da alma, não está adstrita a situação econômica. É ter PAZ interior.

Obrigada, Regina por compartilhares comigo essa história. Amo-te, irmã querida.

CIRCUNSTÂNCIAS (Corinho Evangélico)

Esta paz que eu sinto em minha alma,

Não é porque tudo me vai bem.

Esta paz que eu sinto em minha alma,

É porque eu louvo ao meu Senhor!

Não olho circunstâncias,

Não, não, não, olho o seu amor

Não me guio por vista, alegre estou!

Este gozo que eu sinto em minha alma,

Não é porque olho ao meu redor.

Este gozo que eu sinto em minha alma,

É porque eu louvo ao meu SENHOR.

Ainda que a terra não floresça,

E a vide não dê o seu fruto.

Ainda que os montes se lancem ao mar,

E a terra trema, eu hei de confiar!