Desgosto de Filha

Alguns fatos da vida são muito engraçados. As pessoas te julgam sempre pelos seus atos. Eu sempre assumi os meus, nunca me escondi de nada. Talvez esse tenha sido meu erro. Fui muito odiada. Certa vez, me lembro, estava cheia. Escondia um fato que todos sabiam, mas ninguém falava. Então, nesse dia, na hora do almoço, resolvi contar. Sem o mínimo de rodeios me fiz falar:

 

Filha

Sou lésbica.

 

Todos pararam, se olharam profundamente e continuaram a almoçar, como se nada tivesse acontecido. Meu pai respirou, como se sobre isso fosse falar, mas em três palavras desviou-me até do olhar:

 

Pai

Me passa o arroz?

 

Filho

Toma.

 

Contribuindo para a quebra...

 

Filho

Pô, esse frango tá uma parada, hein?

 

Minha mãe estava calada e eu, de ódio, definhava:

 

Filha

Não vão falar nada?

 

Pai

Sobre o quê?

 

Filha

Disse que sou lésbica!

 

Todos pareciam dispersos e somente pararam, se olharam, respiraram e almoçaram. E em cena minha mãe agora entrava:

 

Mãe

Eu vou buscar a rabanada.

 

Pai

Está uma delícia essa salada, querida.

 

Nesse momento eu entrei em crise, fiquei profundamente decepcionada. Minha amiga me disse que, quando contou, foi até expulsa de casa! E ali, de todos, ninguém me notava. Então, enfurecida eu disse:

 

Filha

Não vai buscar a rabanada!

 

Todos novamente se olharam, respiraram, minha mãe sentou e, num descaso, acreditem, ela almoçou.

 

Mãe

Me passa o feijão?

 

Aquilo era completamente irreal para mim, eu não estava dizendo "quero água" ou coisa assim. Era um caso sério. Dizia, em outras palavras, "esqueça o casamento, eu não dou pra nada". E eles sequer ligaram, fingiram que não escutavam. A essa altura eu não era mais eu, estava possessa, com o demônio na cara!

 

Filha

O que acontece com vocês? Estão malucos, surdos ou se fazem? Eu estou dizendo que sou lésbica, lés-bi-ca, gosto de mulher, colo velcro, bato chaminé! Ouviram?

 

Todos pararam, respiraram e novamente almoçaram. Eu não conseguia entender aquela atitude. Em outras casas caía o mundo... Na minha eles simplesmente ficavam mudos. O que havia de errado? Não compreendia. Tinham combinado? Eu não sabia. Então, rapidamente, tentei atingir de outra forma:

 

Filha

Ô mãe, a Sandrinha vem aqui hoje.

 

E pela primeira vez obtive um resultado:

 

Mãe

Mesmo, filha? Vem jantar?

 

Boa deixa, agora eu ia mandar...

 

Filha

Humrum. Vem dormir comigo! É ela a minha namorada.

 

Yes, comemorava, afinal tinham me percebido. Mas foi em vão. Sabe o que eles fizeram?

 

(todos pararam, se olharam, respiraram e almoçaram).

 

A minha paciência foi pro inferno naquele momento, junto com todos os modos. Não era possível... De nenhuma maneira se manifestavam. Parecia que ficavam surdos e certas palavras não escutavam. Sabem o que eu fiz?

 

(Filha chora alto e revoltosamente)

 

Pai

Minha filha? Está chorando?

 

Mãe

O que houve, Gabi? Por que chora?

 

Filha (soluçando)

Eu estou dizendo que sou lésbica e vocês não dão a mínima!

 

E só nesse momento me escutaram:

 

Mãe

Ah, minha filha, nós já sabíamos, só não queríamos constrangê-la!

 

Pai

Nunca falamos nada porque...

 

Fiquei perplexa e, soluçando, perguntei:

 

Filha

Já sabiam?

 

Mãe

Já.

 

Filha

E não dizem nada?

 

Mãe

Mas dizer o que? Dizer o que? Não é essa a sua escolha, minha filha? Nós queremos que seja feliz, não é Roberto?

 

Pai

É...

 

Filha

Verdade?

 

Pai

Verdade.

 

Mãe

Ô, meu amor! Nós te amamos!

 

A Sandrinha veio e nós dormimos juntas duas semanas. Até que era legal, o clima era de paz e todos nos respeitavam. Mas um dia nós brigamos e o namoro acabamos. Ela não voltou e eu, claro, fugia dos meus pais como o diabo da cruz. Mas um dia foi inevitável. Nós almoçamos juntos e eles então perguntaram:

 

Pai

Gabi, aquela menina, a Sandrinha, não veio mais, por que? Vocês brigaram?

 

Eu prontamente respondi:

 

Filha

Brigamos, nós... terminamos.

 

Mãe

Ah... Mas eu gostava tanto dela... Ah...

 

Filho

Ah...

 

Pai

Ah, mas isso passa... Daqui a pouco estão de volta!

 

Filha

Não, nós não vamos voltar. Eu estou apaixonada... por um cara.

 

Mãe

Calma, Roberto!

 

Filha

E... nós vamos nos casar... Eu tô grávida.

 

Pai

O quê? Mas isso é um absurdo! Eu não acredito numa coisa dessas... Quem é o cara?

 

Mãe

Calma, Roberto! Roberto, calma! 

 

Pai

Eu vou matar esse desgraçado! Fala... quem é o cara?

 

E a casa caiu...

 

Mãe

Roberto, calma, pelo amor de Deus!

 

Pai

Menina, você merece uma surra! Venha aqui! Venha aqui!

 

Ninguém é perfeito!

 

Pai

Eu vou acabar com sua vida, desgraçada! Venha aqui! Venha aqui! Venha aqui!!!

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 19/12/2006
Reeditado em 06/05/2024
Código do texto: T322365
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