Fora da Caixinha

Mal o dia começara e o calor já estava insuportável. O entrevistador tenta aumentar a velocidade do pequeno ventilador de mesa, mas quando este começa a se chacoalhar fazendo ruídos que só aumentariam a sua dor de cabeça, acaba desistindo da tentativa. Próximo, grita para a porta, mesmo sabendo que seria o primeiro da fila. Mas era a senha para que a secretária fizesse a fila andar. Quando chegara vira dezenas de candidatos, cada um mais estranho e desesperado que outro. Provavelmente noventa por cento não teria qualificações para a vaga. Seria mais um longo e cansativo dia.

Os três primeiros candidatos eram o que o entrevistador costumava chamar de arroz com feijão. Não fediam nem cheiravam. Currículos modelo Word, informações de escolaridade e profissionais parcas, incompletas ou inexatas, mesmo em uma lida superficial. Como estes caras querem conseguir um emprego se nem mesmo sabem escrever os seus currículos direito, costumava comentar com os outros entrevistadores durante os intervalos. Quando o quarto candidato entrou, notou algo diferente. Embora fosse jovem, usava terno e gravata sem que estas parecessem roupas emprestadas de última hora. Mostrou postura, carisma e atitude mesmo antes de sentar-se. Estendeu a mão para cumprimentar o entrevistador e perguntou com um sorriso como estava o seu dia de um modo que o entrevistador teve de se conter para não confessar que odiava aquilo tudo e o chamar para tomar um chope. Eram detalhes que já contavam ponto a favor do rapaz mesmo antes da análise curricular.

Ao correr os olhos pelo currículo, o candidato viu os olhos do entrevistador depararem-se com a surpresa que lhe havia preparado. O que é isto, perguntou o entrevistador. Bem, começou a responder calmamente o jovem, resolvi me apresentar à empresa de uma maneira diferente, espero que o senhor aprecie. Sim, mas você fez uma lista das coisas que você não faz, é isso? indagou incrédulo. Isto mesmo, ao invés de tentar convencê-lo por tudo o que eu faço, quero que o senhor conheça a minha personalidade por aquilo que não faço e nunca farei. O entrevistador leu silenciosamente alguns itens da lista.

“Eu nunca assisti A Fazenda, Casa dos Artistas, Big Brother Brasil ou programas similares. Não quer dizer que ignore o que são, mas justamente não os vejo por saber exatamente o que são por meio dos outros. Aliás, a televisão não é um dos meus passatempos favoritos.”

“Não me divirto bebendo até cair ou abusando de qualquer outra droga, ou saindo baladas todas as noites que puder, ou gastando compulsivamente o meu dinheiro em coisas supérfluas, para esquecer-me dos meus problemas cotidianos e dos problemas do meu país.”

“Eu não fico com uma garota diferente a cada semana, somente para contar vantagem aos amigos ou as tratando como produtos descartáveis feitos para a minha satisfação pessoal.”

“Não pertenço a nenhuma denominação religiosa que imponha limites à minha liberdade de questionar, nem a partido político que tenha de apoiar irrestritamente decisões contrárias a minha consciência.”

“Não tenho tanta experiência profissional quanto os outros candidatos, por ser relativamente jovem, nem tenho títulos de graduação, especialização, mestrado e doutorado comprados ou adquiridos porcamente e que prejudicarão mais a mim que aos outros.”

Depois de alguns outros itens, a lista terminava com um pequeno aviso.

“Não tenho a pretensão de mudar para ser uma pessoa pior, e se esta empresa procurar por pessoas que sejam exatamente o oposto do que sou, eu também não gostaria de fazer parte dela, para o bem de ambos.”

Senhor …, embora aprecie a sua inventividade, não posso contratá-lo, reconheceu o entrevistador. Tenho de admitir que muitas das ações descritas pelo senhor são praticadas por muitos funcionários, inclusive por mim. O senhor poderia ser motivo de insatisfação e controvérsia. E concluiu com a frase padrão: Agradeço pela sua disposição e garanto que entrarei em contato com o senhor caso haja um interesse futuro no seu perfil, tudo bem?

O jovem agradeceu polidamente, não demonstrando nenhum rancor e, antes de sair, pediu o seu currículo para escrever uma pequena observação que havia esquecido. Após a anotação, saiu pela porta. O entrevistador leu o escrito e forçou um sorriso. Gritou pela secretária e quando esta apareceu na sua frente, disse que esperasse algumas horas e depois ligasse para o candidato que acabara de sair dizendo que havia sido contratado. Antes de entregar o currículo para ela, deu uma última olhada na observação escrita à caneta.

“Eu nunca me contentaria em permanecer em um emprego que subestimasse as minhas capacidades, ganhando uma remuneração miserável e obedecendo calado à ordens de superiores inferiores como se eu fosse apenas uma peça mecânica sem valor.”