o reencontro

Desde madrugada que não sossegava o coração. Aquele era o dia em que não queria nunca que chagasse. Sabia-o inevitável, mas lutava contra a necessidade de aceita-lo. Agora, porém reconhecia a inutilidade da resistência. Não tinha mais remédio. A rendição naquele ponto em que chegaram as coisas talvez fosse a medida menos dolorida. Ergueu-se da cama com a mesma dificuldade dos últimos tempos, arrimando-se na bengala que pertencera ao falecido e que permanecera guardada por vinte anos como se esperasse pela sua decadência.

Doía-lhe os ossos a cada passo pela casa, mas queria despedir-se de cada objeto que ficaria para trás, talvez para sempre. Poucos a acompanharia nessa etapa final da vida, somente os indispensáveis como era o caso da bengala.

Acariciou o cabo lustroso do objeto que fora uma extensão do braço do homem com que dividira sua vida, era agora a extensão de seu próprio braço. Sorriu lembrando de uma brincadeira que ele costumava fazer com as crianças: Qual é o animal que de manhã anda com quatro patas, ao meio dia com duas e à tarde com três. E ele próprio dava a resposta: O homem. No início da vida engatinha, com os joelhos e as mãos no chão, quando cresce anda em prumo com os dois pés e quando fica velho usa uma bengala como uma terceira perna.

Pendurado na parede da sala estava o antigo retrato na moldura oval de bordas trabalhadas em detalhes dourados. Lá estavam os dois, de meio corpo. Tão lindos! Ela estava então com vinte três anos e ele com trinta e dois, fez as contas. O original daquela fotografia fora tirado há sessenta e cinco anos. Não parecia. Como a vida passa depressa!

Não tiveram filhos, o que não desproveu sua casa da presença de crianças. Como ele gostava muito delas, sabia como cativa-las, mantinha sempre um bom estoque de balas e pirulitos, assim como um vasto repertório de histórias que as atraíam como o mel às formigas. Depois de sua morte houve uma revoada. Os pequenos voaram para outras paragens como andorinhas ao fim do verão. A casa tornou-se esse vazio a que se habituara. Na verdade ele permanecia vivo nos objetos a que devotava seu tempo quando estava em casa. o velho rádio de mesa no qual ele ouvia todas as noites, invariavelmente o programa Linha Sertaneja Classe A, o ensebado volume da Imitação de Cristo onde ele aprendia com Tomás de kêmpis o caminho do céu. Lá devia estar ele, entre os anjos, distribuindo doçuras como fez em vida.

O que mais o mantinha vivo porém eram as suas begônias que ele cuidava com tanto amor e que ela fez questão de não deixar que desaparecessem ao longo dos anos. Eram seres vivos maravilhosos que guardavam um pouco do seu espírito alegre. Quem sabe no asilo houvesse um jardim para o qual pudesse transplantar algumas mudas? Pensando nisso abriu a porta da sala, que dava para o pequeno jardim. Lá estavam elas inocentes do que estava para suceder-se. Ela ausentando-se, elas estavam condenadas a um triste fim.

Derreou-se pesadamente no banco de réguas do alpendre e ficou a olhar as suas plantinhas. Sabia que as estava olhando pela última vez.

O que seria aquilo que estava vendo erguer-se no meio das folhagens? Seus olhos lhe estariam traindo? Ele não precisava mais de bengala. Sorriu-lhe do seu jeito costumeiro:

O nome delas, ele disse oferecendo o sorriso de dentes brancos sob o fino bigode, deriva de Bégan, governador de São Domingos e protetor de Botânica no século XVII.

_ Você. Você! Sempre muito culto. Veio me buscar, não é?

Atordoada, não pode mais suster o braço e a mão que empunhava a bengala tombou inerte. Seus olhos não se fecharam. Permaneceram arregalados naquela expressão de surpresa.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 07/10/2011
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