O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

O sino da igreja anunciou a hora da Ave Maria. Os primeiros raios do crepúsculo começavam a cair sobre a pacata cidade. Pelo Largo da Matriz caminhava um homem magro, o bigode generoso, à cabeça um boné surrado, arrastando os passos de uma vida cansada. Com uma das mãos, carregava às costas pequena escada de madeira; na outra mão, levava sacola com os petrechos de seu mister. Ao passar em frente ao Bar do Chaves, o dono fez sinal para ele entrar e tomar um café. Declinou do convite com um manear de cabeça que poderia significar “agora não posso" ou “deixe pra mais tarde”. Estava atrasado.

Saíra cabisbaixo de casa, a companheira novamente lhe cobrara um metro de chita para o vestido da primeira comunhão da filha. O dinheiro, mal entrava, já ficava no armazém do Collaço. A Câmara Municipal pagava o serviço de iluminação pública a cada dois meses, após o envio das contas à comissão competente para ser votada em sessão ordinária. Ele desconfiava que os vereadores adiavam de propósito o pagamento de suas contas.

Decerto pensassem que era peixinho do Coronel Biallé. Negava isso a todos. Não era peixinho de coronel nenhum. Nem do Coronel Jeremias, que mandava na cidade desde 1900. Pobre não tem que ser peixinho de ninguém. Tem é que morder a isca no anzol que lhe atiram. Não viera de Paranaguá há quinze anos para, em Iguape, se meter em disputas de facções políticas. Ficava quieto em seu canto e só abria a boca para pitar seu fumo de corda ou para beber uma dose de “Cristiano”.

Começou pelo poste em frente ao palacete do Capitão Moutinho. Encostou a escada no poste, abriu o saco de petrechos, pegou o vasilhame de querosene e um pavio novo. Retirou o globo de vidro, despejou um pouco de querosene no reservatório do lampião, trocou o pavio, riscou um fósforo, que o vento leste logo apagou, riscou outro e, agora com êxito, acendeu o pavio.

De poste em poste, foi acendendo, um a um, todos os lampiões do Largo da Matriz, até chegar ao sobrado do Coronel Jeremias. Tratou de caprichar na quantidade de querosene para que o lume durasse até o amanhecer, e colocou um pavio encorpado para que a luz iluminasse melhor o entorno. Na sacada do sobrado, o coronel cumprimentou-o formalmente, levantando a aba da cartola com um dedo.

Terminado o serviço no Largo da Matriz, seguiu para a rua da Palha, dali para a rua do Campo, de onde desembocou no Largo do Rosário; voltou pela rua da Glória e dali foi para o Beco dos Quatro Cantos e Largo de São Benedito. A noite já caíra por completo.

Na descida dos Quatro Cantos, após acender o lampião da esquina, sentou-se na calçada de pedra para descansar. Ouviu, ali por perto, os tambores do jongo que dona Marica Bruno e amigas dançavam, depois da dura lida diária batendo arroz no engenho do Capitão Hipólito. Acompanhou o jongo com os pés, ao mesmo tempo em que se lembrava da congada que, em menino, acompanhava desde as bandas da Folha Larga e que parava em frente à Igreja de São Benedito. A festa do santo era no dia 26 de dezembro.

Levantou-se e desceu o beco. No Largo de São Benedito, acendeu todos os lampiões. Só o que ficava em frente ao Sobrado dos Toledo deixou sem lume – esquecera de trazer mais pavios novos.

Lá pelas nove horas da noite, retornou para casa, nos lados da Misericórdia. A companheira e a filha já haviam jantado, dormiam sono avançado, acomodadas nas esteiras de piri. Comeu o resto do peixe frito que sobrara, acompanhado de um punhado de arroz. Deu umas pitadas e se deitou na esteira, ao lado da companheira. Estava cansado. Amanhecendo o dia, sairia pela cidade, seguindo o mesmo trajeto de todos os dias, de segunda a domingo, para apagar o lume dos lampiões que ainda estivessem acesos.

Antes de pegar no sono, lembrou que amanhã à tarde haveria sessão da Câmara. Era bem possível que autorizassem o pagamento do serviço do mês retrasado. Se saísse o dinheiro, passaria na loja do Capitão Floramante e compraria não um, mas dois metros de boa chita para o vestido de comunhão da filha.

Roberto Fortes
Enviado por Roberto Fortes em 23/10/2011
Reeditado em 23/10/2011
Código do texto: T3293335
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