A VELHA E O PORCO

O padre Pedro acabara de chegar a Itaoca. A cada mês deixava a Vila de Apiaí, sede da paróquia, para desempenhar suas funções sacerdotais naquele povoado do Alto Ribeira. Quando chegava a Itaoca, encontrava muitas almas para serem batizadas, muitos casamentos já consumados, mas ainda não sacramentados pela Igreja, muitos registros de óbitos para serem consignados no livro competente, que mal e mal eram anotados em folhas avulsas pelo zeloso Tião, que fazia as vezes de sacristão não remunerado.

A viagem era feita em canoa, remada por um velho bugre de rija compleição. Avançando lentamente pelas águas da Ribeira, o percurso era feito em cerca de meio dia, com dormida nalguma paragem quando a noite começava a se anunciar. Mal chegava a Itaoca e o povo já o cercava. Desta feita encontrou uma mulher acamada.

– O senhor padre tem óleo santo pra gente beber? As gentes de dantes diziam que é tiro e queda, e quero me curar logo...

Ao que o padre Pedro a censurava:

– Minha senhora, eu lhe trouxe a comunhão!

– Hum, isso é bom também, seu padre...

Padre Pedro se martirizava. O doente quer, antes de tudo, salvar o corpo. “Meu Deus, pensava o sacerdote, e onde fica a alma?”

Outro itaoquense se achegou ao padre, trazendo uma garrafa à mão, o que despertou a curiosidade do servo de Deus.

– E essa garrafa aí, o que tem dentro? É alguma receita homeopática?

– Não, seu padre, é água benzida mesmo...

– Que bom, e quem a benzeu? Trouxe da igreja?

– Não, seu padre, quem benzeu foi seu João, ele mora aqui pertinho. Isto é bom que dói...

Era difícil para o padre conciliar os sacramentos religiosos com as crendices do lugar.

Ao chegar à acanhada capelinha dedicada a São Sebastião, padre Pedro encontrou a porta da frente fechada. Não se demorou ali nem cinco minutos, logo apareceu Tião, morador da casa ao lado, trazendo nas mãos magras as chaves da igreja.

– Seu vigário padre – disse, pachorrentamente, Tião. – Seu vigário padre, antes de começar os despachos que esperam vosmecê na igreja, venha mais eu na casa da viúva Emerciana. A velha só está esperando a hora de entregar a carcaça à terra e o espírito a Deus nosso Senhor. A família, pelo sim pelo não, quer deixar garantida a extrema unção que a velha tem direito antes de partir desta pra melhor...

A casa da viúva ficava na outra rua, das duas que formavam o lugarejo. A casa era de taipa, baixa, coberta por telhas de canal e caiada de branco. Os familiares receberam o padre na sala, e em seguida se dirigiram ao quartinho onde Emerciana estava entrevada há mais de um mês. Na cama, coberta por uma manta puída que um dia fora da cor marrom, padre Pedro pode observar o rosto magro e devastado da velha. Percebeu que Emerciana o recebeu com uma expressão de angústia nos olhos, como se algo a estivesse apavorando.

– Ui, ui, ui – gemia a velha. – Não quero morrer desse jeito, seu padre... Não deixe eles fazerem isso comigo, não... ui, ui, ui...

No aposento apertado, onde os presentes eram obrigados a se espremer uns aos outros, padre Pedro notou que haviam colocado um saco de sal no chão, a cerca de um metro da cama da velha. E o que mais o impressionou foi que, no pé da cama, tinham colocado a metade de um porco morto. Que cena bizarra! A família não tinha onde guardar o suíno, que estava reservado para a ceia natalina dali a duas semanas. O porco fora limpo, salgado e colocado sobre o colchão.

Os olhos esbugalhados de Emerciana, a face transtornada, estavam a evidenciar toda a sua angústia. Padre Pedro, sacerdote calejado por tantas coisas vistas e vividas neste mundo de Deus, ordenou que a família retirasse dali imediatamente a metade do porco e o saco de sal.

– Dêem paz ao espírito desta cristã... – disse o padre. – Vocês não estão vendo que, depois de morta, ela não quer ser salgada que nem um porco?...

Roberto Fortes
Enviado por Roberto Fortes em 23/10/2011
Código do texto: T3293356
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