Galinha Choca

(*)

Pai Cafumango veio dos fundos atender a mulher vestindo preto, bem nova. Por saber da causa divulgada, adiantou os trabalhos. Entrasse para o quartinho de benzer, para a sessão recomendada e distinguida.

Na cegueira dos olhos mal acostumados à penumbra, viúva transpôs a cortina, arrastando os pés para sentir o plano do chão. Trouxe puxado o Moleque pelo braço. Divisando o banquinho encardido, noutras vezes tendo ali se sentado mas sem problemas mais graves de agora, prendeu o filho ao colo. Pela luzinha anêmica vindo do altar de Nossa Senhora, podia divisar os modos medidos do benzedor, providenciando os petrechos afins.

Aproximando com fala mudada para mansa, retrincada de comiseração, Pai Cafumango assim se recurvou sobre eles, com o rosário e o santinho:

- Então, filha, muita tristeza?

Viúva amuou e veio o soluço. Embargada, anuiu que sim. Moleque, com espanto pelo cenário do lugar e dos modos, fez contrair na rima dos lábios o choramingo.

Pai Cafumango descansou a mão desocupada em riba dos dois, meio querendo empalmar as cabeças juntas. Sibilou e sibilou as preces pertinentes.

* * *

Porque o Lugarejo, um só comentário nos três dias derradeiros.

Inocêncio morto covardemente, de coisa à toa. Assuntos horrorosos, de se duvidar quando o sujeito simples e boa pessoa possa, num repente, perder a vida como os cachorros de rua. E por quê? Só porque, em trazendo canseira do roçado, passava ali pela Serraria Velha e viu, sem nenhum querer, o moço levando a galinha no sovaco. Não reparou. Só viu. O moço e a galinha que ele levava enforcando o pescoço pelado, do jeito para não dar barulho. Decerto.

Serraria Velha, há tempo desativada no meio da capoeira, mantém os pés de bucha encarapitando-se pelas ripas apodrecidas e destelhadas. Inocêncio fazia caminho por ali, passava muito sem nada pretender, mas viu e confirmou no átimo, agora com dona Carlota interpelando. Dona Carlota, dona duma galinha sumida de um par de dias, ausente do terreiro até para catar milho, e o ninho de chocar lá debaixo dos pés de bucha anda com ovos frios, capaz de agourados. Procura, não sabe paradeiro.

- Espie aqui - apontou Inocêncio segurando o queixo com um dedo, forçando a lembrança. - Eu vi, deveras, dona Carlota: era de-tarde, topei com um moço de galinha pelada - o detalhe do pescoço -, descendo espremido, ressabiado.

* * *

Mas, nesse tal dia, no escurecer, os meninos rodavam pneus pelos arredores de casa e gritavam. Bateram palma. Inocêncio saiu atender, porque escutou que perguntaram:

- Seu pai anda em casa?

Já suspeito desde o falar, os meninos entraram correndo. Inocêncio, delator, tomou um tiro de cartucheira e rompeu o ombro inteiro. Fechou a porta em defesa, dois outros saltaram janela adentro. Faca alumiando. Inocêncio, espremido no canto, recebeu a primeira facada, mas se desvencilhou deste; recebeu do outro o outro golpe e, assim na roda, os meninos desprotegidos no meio, seguiu ganhando furos de enfiada, como o boi em dia de farra.

O sangue despejava-se no ladrilho, nas cadeiras, na toalha da mesa, em cima dos meninos. O Menorzinho, berro só, não compreendia porque o pai pulava encabritado, levando furos pelas costas, na barriga, na garganta, nos braços.

Mas este, o Maiorzinho, mudo e vendo e nada fazendo, veio da porta atolando um dedo na boca, espiar o corpo. Inocêncio, cansado de tentar escapulir, parou recostado na parede e foi sentando devagar, marcando o vermelho nas tábuas da sala.

- Mãe, cortaram a língua do pai.

* * *

Viúva, neste ponto do relato, fungou na barra da saia, mirando para o chão, no escuro do quartinho de benzer. Para o Pai Cafumango então tirar só os males desse moleque, o Maiorzinho, piorado.

Vive perrengue. Não proseia. Sem apetite. Dorme mas só aos pulinhos, sempre com espantos. Mora mais abobado no ar, parecendo com as bichas-solitárias atiçadas na barriga, porque a falta do pai ele entende mais.

(*) Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª Edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 30/10/2011
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