MACARRONADA



1.

Quaresminha Ferro-Fumaça era aquele maquinista de estilo. Galante no ofício. Anos e viagens sem sair dos trilhos lhe permitiam a reputação, indo e vindo com a locomotiva.

Uma vida na companhia.

Mas, em regressando acometido de qualquer despeito, apontava na curva e vinha apitando, dando cavalo-de-pau e forçando a locomotiva derrapar rodas. Bonito, mas absurdo. Feito para as moçoilas da estação.

Doidinho, doidinho.

Fatos ocorridos em questão de há muitos janeiros. Deveras significativos, tem hoje fulanos e sicranos guardando ainda lembranças das feições do hominho miúdo, empinadinho, repleto de perequetês por onde passava.

Assim é nos aparecimentos da dona Assunção: ninguém leva em conta a viuvez; como se o Quaresminha lhe fizesse par, vindo risonho, empossado cavalheiro cedendo à dama um braço. Dona Assunção é a história viva do maquinista, quem, em mocidade, mulherengo e mulherengo, chegara e sacudira o Lugarejo com o anúncio de dividir o colchão com ela.

Dona Assunção transformara o destino do maquinista. O mundo fizera chacota do casamento, mas logo calara convencido: Quaresminha tornara-se num sujeito sério, apegado ao lar.

Apaixonado.

E tonto. Porque não era o caso de fazer grandeza, largando as maluquices da vida para pôr os dois pés e a cabeça presos pela mulher, forçando o destino. Tanto assim, passados os tempos, o próprio viera dar conta do exagero. Houvera o dia de rabiscar correndo uma carta: pedia desculpas, sentia-se enjoado da quietude, avisava de ter fugido com uma das primas de dona Assunção.

O marido dessa outra também perseguira a pista e tivera preguiça. Desanimado na volta, quisera estabelecer um pacto com dona Assunção. Perdera tempo, até quando ela, sempre indo esperar o trem, confessara: homem no mundo existia mesmo um, o Quaresminha. Segredava clemência para todos os santos, e era uma convicta: batendo cabeça pelo mundo sem rumo, o espevitado do Quaresminha terminaria correndo para os cantos dela.



2.

Arribado dali, davam informação de um infeliz vivendo na tábua da beirada, sem ter de arrumar. Às vezes, sem dispor na cozinha. A prima fugida fugira com um vigário das redondezas. Um feito, aliás, que beneficiara o miserável maquinista: assumira os fiéis, ampliara a seita, surpreendera-se com os talentos de pregador. Subido nos púlpitos, declarava a Redenção.

Expandira. Encantara. Para ser justo, empreendera milagres. Ajeitava os prumos de espiritados, reconstituía casamentos, desentortava aleijumes, quase dera cura a desenganados. Do sujeitinho de outrora, nem souberam o nome.

Temporadas corridas, estava ele ali recostado no balaústre a espiar a romaria em seu território. O sol entrava no mês de dezembro. Batera saudade da locomotiva, daqueles tempos de bonitos e danuras, nada atrapalhando a vida dos outros. Reunira o mais apropriado para a mudança de ida sem volta, largara a igreja para trás.



3.

Agora Dona Assunção estava mocinha em lua-de-mel, indo e vindo cautelosa, os recatos com a saia, arrumando toalhinhas na mesa e mexendo as panelas no fogo. Logo, a locomotiva apitou um apito do jeito de tantas vezes, nos começos. As mesmas cenas, com a criançada correndo ver o trem; as mocinhas, conhecer os visitantes; os velhos, receber as notícias da Comarca. Dona Assunção também compareceu, mas, nesse caso, para aguardar o Quaresminha Ferro-Fumaça.

Quando serviu a tigela de macarrão com tomates em rodelinhas por cima, o marido fez um ah!, fingindo não adivinhar tal surpresa, preparada para celebrar o reatamento do casal. Lambiam os beiços, riam toda vez, ninguém escorregava para as dívidas do passado. Representavam uma vivência de todo dia só o futuro e muito querer.

Nessa dada noite, dona Assunção buliu com o marido, na hora da cama. Sobre o paradeiro da prima esperotiada. Quaresminha, coincidindo com a barriga cheia, estrebuchou parecendo de amor ou indigestão. Aí, vomitou macarronada e uma bílis muito verde. A resposta não deu. Pendeu para o lado e, morto, decerto viajou sem a locomotiva, desta vez largando para sempre a dona Assunção em desespero, um choro só.


Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição.

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 01/11/2011
Reeditado em 23/09/2012
Código do texto: T3311182
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