O mistério do pingente de ouro.
 
     No cume do meu desespero, num suplício de um progenitor que se sente impotente defronte de seu filho moribundo, eu busquei todos os remédios possíveis que pudessem socorrê-lo. Conversei com médicos diversos, visitei todos os templos e terreiros conhecidos, porém, nenhum sucesso eu obtive, meu menino segue ruim, doente, inconsciente sobre um leito frio de um pronto-socorro. Só que ninguém descobre o que ele tem...
     E o pior, é que têm cinco meses que fiquei viúvo, um delinquente ébrio perdeu o controle de seu veículo e tirou Denise de mim. E desde esse momento, o meu filho é o único ente querido que possuo, por isso, o medo de perdê-lo tornou-se tremendo. Se Denise pelo menos estivesse comigo...
Sinto-me esquecido por Deus, sem rumo, sem um belo como horizonte, querendo morrer... E se meu filho se for, eu perderei em definitivo o gosto pelo viver... E é por isso que imploro...
     Depois de todo poente, sempre coloco meus joelhos sobre o piso frio do meu dormitório e rezo... Rezo muito. Contudo, penso que sou um súplice de um nume que nem sequer me ouve. Questiono o porquê de Deus ter feito isso comigo. Primeiro levou Denise, e hoje quer o meu filho. Por que comigo, meu Senhor? Por que comigo? Inquiro por vezes o Onipotente como se eu fosse um juiz. Sem conhecer os seus desígnios eu O julgo. O desespero tornou-se meu fiel e único cúmplice. Por que logo meu filho?
     Estou perto de perder meu emprego, vejo somente um denso breu engolindo-me, de repente todo o mundo despencou sobre meus ombros. Estou seco, sem um pingo de choro por dentro, entregue...

     Triiimmmm... Triiiiiiiiiiiiimmmm... O telefone toou.
     – “O doutor... Só pode ser o doutor” – pensei, e corri. – Oi doutor! – Pronunciei-me no segundo em que peguei o fone.
     – Oi Júlio, sou eu mesmo. Preciso ter um minutinho contigo.
     – Pode dizer doutor! É sobre o meu filho? Ele melhorou?
     – Júlio... – O doutor interrompeu-me e, senti um frio percorrer o meu espírito. – Dê um pulinho no meu escritório, e se possível, hoje mesmo. Preciso discorrer-lhe os últimos pormenores sobre o prognóstico do seu filho.
     – É sério, doutor? – Lhe inquiri de novo, com voz de choro.
     – Dê um pulinho em meu consultório, Júlio – o doutor concluiu.
     – Tudo bem, doutor. Em vinte minutinhos estou no consultório.

     Depois do colóquio com o doutor Dionísio – que só é doutor porque defendeu tese incomum –, vesti-me, olhei o dormitório todo colorido do meu filho, vi seus brinquedos, o bonequinho que lhe dei no outono em que ele completou seis invernos, observei tudo e de novo eu chorei. Fechei o cômodo. No corredor fiz um último pedido: Que Deus protegesse o meu filho, meu querido menino...
     Fiquei pouco tempo no ponto, e o meu ônibus logo surgiu.
     No consultório – que é no térreo do mesmo pronto-socorro em que meu menino insisti pelo viver – eu cheguei veloz, em vinte e dois minutos, um pouquinho perto do que prometi.
     O doutor mesmo recebeu-me.
     – O que ocorreu com meu filho, doutor? Ele piorou? Melhorou? – Despejei questões – em tom histérico – sobre o médico. Num desespero enorme.
     – Sente-se, Júlio – ele pediu-me.
     – Obedeci de pronto, nervoso com o momento.
     – Júlio... – o doutor começou. – Eu pretendo ser bem objetivo no que quero lhe dizer.
     – Pode me dizer, doutor! O que meu filho tem? É sério?
     – É sério sim, Júlio – o médico enfiou esse duro veredito em meu peito. E nesse momento perdi os sentidos, pensei no meu filho indo, eu sozinho, sem entes queridos. – O seu filho tem um tumor no cérebro, Júlio... De um tipo inédito no mundo. É muito sério...
     Quis morrer com os dizeres que ouvi e, em silêncio, de novo julguei Deus.
     – Júlio, escute-me! O seu filho tem os melhores médicos, os melhores enfermeiros, os melhores serviços. Procure ter controle. Prometo-lhe que despenderei todo esforço que eu tiver em seu filho. Se depender de mim, ele vive.
     – Por obséquio, doutor... Eu lhe imploro...
     – Procure ter controle, Júlio... Procure ter controle. É preciso ter fé, pois nesses momentos isso é o melhor remédio.
     – Tudo bem, doutor, eu terei... Se for possível.
     – Se você quiser, pode ir ver seu filho no leito três do centro intensivo três. Só que chegue em silêncio.
     – Irei vê-lo – emendei de pronto. – Cuide dele doutor, por obséquio – concluí, com imenso choro querendo correr em meu rosto. Com medo...
     – Eu cuido, Júlio... Confie em mim...
     – Vou vê-lo.
     – Isso, pode ir – o doutor encerrou.

     Fui recebido no centro intensivo três por um enfermeiro muito receptivo, com um belo sorriso. Perguntei-lhe sobre o menino do leito três. O enfermeiro indicou-me o leito e depois me disse: O senhor tem quinze minutos.
     – Só isso?
     – Só, senhor... Temos procedimentos rigorosos no centro intensivo e, é preciso cumpri-los.
     – Tudo bem – compreendi e respeitei o enfermeiro.
     Fui ver o meu pequeno presente de Deus, todo inocente, inerte, cheio de tubos, com lindos momentos interrompidos. Toquei em seu rosto. Lembrei-me dos momentos em que o vi correndo com seus brinquedos, todo feliz e, chorei por vê-lo morrendo
     Fiquei com meu filho no centro intensivo pelos quinze minutos permitidos, tempo que foi muito curto.
     – O tempo encerrou, senhor – o enfermeiro decretou.
     Fiquei triste pelo pouco tempo que tive, contudo, obedeci. Dei um último beijo no meu filho e emergi do centro intensivo. Despontei do pronto-socorro em soluços, imerso em choro, perdido, sem rumo, sem querer viver. Sobre mim vi um lúgubre céu querendo engolir-me, com nuvens tristes, sem luz.
     Por um tempo, nenhum rumo surgiu-me como destino, de novo eu quis morrer, de novo fui herege, sem fé, sem um mínimo gosto pelo viver. No horizonte somente um breu despido, um mundo escuro rindo de mim, do meu destino.
     Com os olhos perdidos iniciei um percurso sem um fim definido e, depois de poucos metros decorridos entrei num beco e decidi fugir do meu desespero. Lembrei-me de um boteco conhecido e fui... No decurso, um menino...
     – Tio... O senhor tem um dinheiro? Eu estou com fome, com frio...
     – Que dinheiro o quê, moleque... Some! – Expulsei o menino que, sem medo, nem se moveu e, perguntou-me:
     – O que entristece o senhor?
     – Como disse? – Inquiri o moleque.
     – Eu perguntei sobre o motivo que entristece o senhor.
     – Vê se some seu moleque! – Insisti com meus insultos. Porém, segui meu destino, curioso e inquieto com o quê o menino perguntou-me. Empós poucos metros olhei por sobre o ombro e vi o mesmo menino, quietinho, encolhido sobre o meio fio, com fome, com frio... Senti um pouco de remorso, contudo, continuei...

     Cheguei ligeiro no boteco e logo pedi um copo com dois dedos de uísque.
     – O senhor quer gelo? – O jovem do boteco objetou-me.
     – Pode por um cubinho – concluí.
     Um minuto depois, meu copo chegou e, virei o conteúdo num só gole.
     – Me vê outro, meu querido, por obséquio – solicitei.
     – O moço olhou-me perplexo, porém, em silêncio recebeu o meu pedido e serviu-me de outro gole.
     De novo eu virei e pedi o terceiro, depois outro, e outros...

     Só despertei sob os meus lençóis e cobertores no dilúculo seguinte, tonto.

     De repente, vi o mesmo menino do beco, dentro do meu cômodo e, levei um susto. Pensei que fosse um sonho, esfreguei os olhos e o menino continuou de pé, com seus olhos sobre mim e o esboço de um leve sorriso no rosto. “Eu estou louco, é isso” – pensei. Esfreguei de novo os meus olhos, e outro susto eu levei no momento em que percebi o verídico defronte de mim.
     – Como entrou no meu dormitório, seu moleque? – O questionei nervoso.
     – Desculpe-me tio... É que o senhor ficou ruim ontem no boteco, e eu lhe trouxe.
     – Como me trouxe?
     – Eu mexi no seu bolso e vi um bilhete contendo seu endereço. Depois, junto com um conhecido meu eu lhe trouxe, só isso... Desculpe-me... E como o senhor melhorou, eu estou indo.
     – Que indo o quê! Explique-me direitinho isso! Ontem eu lhe neguei dinheiro, lhe deixei com fome e com frio, contudo, você ignorou o meu desprezo e trouxe-me, ébrio. É muito nobre o que você fez. E por que fez isso?
     – Só porque é certo, tio... Só porque é certo... O boteco do seu José é muito perigoso.
     – Só porque é certo, sei... – refleti. – Você tem um espírito bondoso, guri.
     – Só fiz o que é certo, tio...
     – Tudo bem... – Encerrei o colóquio e, emergi dos cobertores. Espreguicei-me um pouco... – Você é sozinho no mundo? – Questionei o menino, curioso.
     – Sou, tio... Eu sou sozinho – ele respondeu-me, com olhos tristes. – Só que é por pouco tempo.
     – E os seus entes queridos?
     – Houve um incêndio no meu prédio e morreu todo mundo, tio. O enterro foi ontem, no Cemitério dos lírios.
     – Sinto muito – concluí sem ter muito o quê dizer e, nesse momento, o remorso intensificou-se dentro de mim, pois me lembrei que deixei o pobre menino com fome e com frio sobre o meio fio. – Como é o seu nome?
     – Meu nome é Uriel, tio.
     – Que nome lindo... E o seu prédio, é longe?
     – Meu prédio é perto do Fórum, um edifício verde. Que hoje virou um esqueleto negro de cimento.
     Depois destes dizeres, o menino ficou um tempo com os olhos perdidos no piso. Logo empós esboçou um leve e terno sorriso, de intenso brilho e, inquiriu-me:
     – O que lhe entristece, tio?
     – Que curioso... Ontem você me perguntou isso... E hoje de novo... Como pode ter conhecimento de que estou triste? – Objetei.
     – Os seus olhos dizem. Só consigo ver medo, dor e desespero neles – o menino despejou sobre mim estes dizeres.
     Lembrei-me do meu pequeno filho inconsciente sobre o leito do centro intensivo e, foi impossível conter o choro.
     – O que me entristece é o meu filho doente. Ele tem um tumor no cérebro que é muito sério, inclusive, preciso ir vê-lo no pronto-socorro.
     – Eu posso ir com o senhor?
     Surpreendi-me com o súbito pedido do menino e com o porquê dele querer ir junto.
     – Por que quer ir comigo? – O interroguei.
     – Só quero vê-lo, tio... Como ele é?
     – Ele é um menino lindo, cortês, bondoso, o melhor presente que recebi de Deus, porém, neste momento, o mesmo Deus que me presenteou quer o meu filho. Como pode um Ser bondoso ser cruel desse jeito?
     – É que nem sempre os desígnios de Deus obedecem nossos desejos, tio... Confie Nele.
     – Eu tento, guri... Juro que tento. Procuro entender o motivo disso tudo, só que é difícil. É difícil você ver seu filho morrendo e ter fé de que isso é certo, de que isso é um destino escrito por Deus.
     – Confie Nele, tio... Confie Nele.
     De novo um pouco de choro correu sobre meu rosto, o enxuguei e peguei o meu terno sobre um móvel rústico que tenho.
     – Bom... Se você quer mesmo ir ver meu filho, me espere um tempinho que eu preciso de uns minutinhos sob o chuveiro. Eu estou fedendo, num misto de suor e uísque e, deste modo é impossível eu ir – discorri.
     – Eu espero, tio.
     – Se você quiser, sente-se sobre os lençóis mesmo.
     – Eu fico em pé mesmo, tio.
     – Como quiser... Eu volto num minuto – findei o colóquio.
     Deixei o menino sozinho no meu dormitório e fui me despir. Entrei sob o delicioso fervor do chuveiro e retirei de mim os resquícios do porre que tomei. Refleti um pouco sobre tudo, sobre o poço escuro em que me encontro nos últimos tempos, sobre meu emprego. “Putz, o meu emprego” – um súbito impulso preocupou-me no momento em que me lembrei do meu emprego. “Eu preciso discorrer com meu chefe, pois se eu perder o emprego o meu filho perde o convênio” – pensei inquieto. Desliguei o chuveiro com esse medo corroendo-me. Vesti-me ligeiro e o meu primeiro destino depois do chuveiro foi o telefone.
     O menino viu-me surgindo do irrigo com desespero e pouco entendeu.
Peguei o fone, disquei o número do meu chefe e esperei.
     – Quem é vivo sempre ressurge, hein – foi o que meu chefe disse.
     – Tudo bem, Rodolfo?
     – Comigo sim. E com o senhor que sumiu do seu emprego sem nem sequer expor um motivo?
     – Desculpe-me chefe! Eu sei que fui pueril.
     – E põe pueril nisso – ele interrompeu-me. O quê que houve Júlio?
     – É o meu filho, Rodolfo. O médico descobriu que ele tem um tumor no cérebro. E eu perdi-me em desespero e esqueci-me de tudo, inclusive do emprego. Desculpe-me, Rodolfo.
     – Sinto muito pelo seu filho, Júlio. Só que o doutor Sérgio é muito menos compreensivo do que eu. Têm conteúdos e clientes seus pendentes que ninguém conhece. Você tem que vir, ou o Sérgio lhe substitui por outro.
     – Eu entendo Rodolfo... Oh, neste momento estou indo ver o meu filho no pronto-socorro, contudo, depois disso eu porei meus miolos em ordem e neste domingo mesmo eu surjo no escritório e resolvo tudo. Confie em mim.
     – Eu confio, Júlio. Só que vem mesmo, porque seu emprego corre risco.
     – Eu irei – concluí e desliguei o telefone. “Perder meu emprego é o pior que pode ocorrer-me neste momento” – refleti.
     – Tudo bem, tio? – O menino – sobre os meus lençóis sujos – perguntou-me e tirou-me dos meus medos internos.
     – Tudo – respondi, fingindo controle. – Você quer ir mesmo comigo, Uriel?
     – Se puder eu quero.
     – Pode sim. Só que primeiro nós comeremos um pouco. Certo?
     – Como o senhor preferir.

     Uriel e eu fizemos o desjejum – com ovos mexidos, bolo e suco – em vinte minutos. Perdemos outros vinte e cinco no ponto de ônibus e, surgimos no pronto-socorro só depois de uns cento e dez minutos. O excessivo número de veículos – costumeiro no momento de pico – prejudicou nosso fluir.

     No centro intensivo procurei o mesmo enfermeiro de sempre e, ele, logo que me viu, veio receber-me.
     – Tudo bem, seu Júlio?
     – Tudo bom, Clemente – respondi. – E o meu filho, melhorou?
     – Sinto muito, seu Júlio. Ele segue inconsciente.
     Senti-me triste com os dizeres do enfermeiro, pensei no meu filhinho sofrendo, inocente e, percebendo o pessimismo em meus olhos com choro, Clemente tirou-me do desespero:
     – E este menino, quem é? – O enfermeiro questionou-me.
     – É o meu sobrinho Uriel – respondi o que me veio no momento. – Ele veio ver o priminho.
     – Seu Júlio, o tempo que vocês têm é só quinze minutos. E só é permitido o ingresso de um de vocês por vez. Eu lhe disse sobre os procedimentos...
     – Tudo bem, Clemente. Nós dividimos o tempo. Uns cinco minutinhos dele e uns dez meu, pode ser?
     – Como o senhor quiser. Se cumprirem os quinze, tudo bem.
     – Certo – concordei.

     O enfermeiro retirou-se...

     – Uriel, entre você primeiro e depois eu vou, só que você só tem cinco minutinhos. Entendeu?
     – Entendi – tio. E oh, confie em Deus.
     – Cinco minutinhos, Uriel – respondi seco, sem querer ter fé. Depois me virei e o deixei sozinho.

     O pequeno Uriel entrou no leito três e viu o menino doente, inocente, cheio de tubos, inconsciente, morrendo. Uriel chegou bem perto e tocou-lhe no rosto, de modo terno. Vinícius despertou e ficou feliz por ver um menino de luz lhe sorrindo um sorriso de intenso brilho, belo. Vinícius retribuiu o sorriso.
     – Tudo bem, Vinícius? – O menino Uriel perguntou-lhe.
     – Tudo... Só estou com um pouco de dor... Quem é você? – Vinícius objetou, sem conhecer o menino.
     – Eu lhe trouxe um presente – Uriel respondeu no momento em que retirou do pescoço um cordel de ouro junto de um pingente, um crucifixo, de ouro como o cordel. Colocou no pescoço do pequeno Vinícius e proferiu os seguintes dizeres: “Leve sempre contigo este cordel, ele tem o poder de lhe proteger. Só que, continue sendo sempre um menino bom, porque o cordel só protege os que seguem o bem. Respeite o seu querido genitor, respeite os outros seres e, lembre-se sempre de Deus, pois foi ele quem lhe enviou este presente”.
     Vinícius piscou o olho com se estivesse num sonho e, nesse ligeiro tempo, o menino Uriel sumiu...

     – Enfermeiro... Enfermeiro! – O pequeno gritou.
     Num primeiro momento, o enfermeiro Clemente ignorou os sons recebidos por seus ouvidos.
     – Enfermeiro... Enfermeiro! Vinícius insistiu.
     Com os novos gritos, que o enfermeiro percebeu serem de menino, Clemente correu no leito três e, ficou surpreso com o que viu. O pequeno Vinícius desperto, sorrindo.
     – Meu Deus – foi o que Clemente conseguiu dizer.

     Percebi o término dos cinco minutos de Uriel e entrei no leito três bem no momento em que ouvi o “meu Deus” proferido pelo enfermeiro.
     – O que houve Clemente?
     – Ele despertou... O seu filho despertou Júlio – foi o que Clemente despejou sobre mim.
     – O quê? – Perguntei perplexo.
     – O seu filho, seu Júlio! Ele despertou.
     – Filho! – Emocionei-me no momento em que vi Vinícius desperto sobre o leito, sorrindo. – Meu filho! – Corri, com o rosto repleto de choro e o peito explodindo, feliz, e joguei-me sobre meu menino. – Meu querido, como eu tive medo de lhe perder. Como eu tive medo... – Cingi bem forte o corpinho do meu filho.
     Todo feliz e perdido com o esplêndido do momento, pronunciei:
     – Você viu Uriel? O meu filho desper... – Iniciei os dizeres, porém, olhei no entorno e percebi o sumiço do menino. – Uriel? Ninguém... Só Clemente, meu filho e eu no leito três. – E o menino, Clemente?
     – E eu é que sei seu Júlio?
     – Ué, como um menino some de um centro intensivo?
     – E eu é que sei seu Júlio? Eu cuido de cinco leitos e, só vim no leito três, do seu filho, porque ouvi um grito.
     – Fui eu quem gritou. Porque eu vi um menino todo de luz. Só que ele conversou comigo e depois sumiu.
     – Você viu o Uriel, filho?
     – Eu vi. O nome dele é Uriel? Ele me deu este presente, oh! – Vinícius mostrou o cordel de ouro com o crucifixo. – Ele me disse que isto tem o poder de me proteger, desde que eu continue sendo um menino bom. Depois disso ele sumiu...
     – Presente? E ele lhe disse isso, filho? – Perguntei perplexo, sem entender, e olhei o pingente pendendo no fio de ouro.
     – Disse...

     – Seu Júlio, o senhor tem um minutinho? – O enfermeiro questionou-me.
     – É óbvio que tenho. Deixe-me só me despedir do meu filho que logo cedo-lhe o minutinho que quer.
– Tudo bem – Clemente concluiu.
     Cheguei perto do meu filho de novo e toquei-lhe no rosto, o choro formou-se em mim e correu livre; mitigo de um espírito repleto de dor e desespero. “Meu menino vivo” – pensei comigo. Dei outro forte beijo nele, sequei o choro, lhe disse dois ou três dizeres de conforto. Ele sorriu tímido, doentinho. Toquei-lhe no rosto e, de novo o choro quis correr.
     – Fique com Deus, meu filho – proferi por fim, lhe dei um último beijo e emergi do leito três.

     – O que foi Clemente? – Inquiri o enfermeiro.
     – Júlio, sinto lhe dizer...
     – O que foi? – Interrompi o enfermeiro, inquieto.
     – Isso que ocorreu com seu filho pode ser um último suspiro de morte.
     – O quê?
     – Desculpe-me dizer isso, seu Júlio... É que muitos indivíduos vêm do inconsciente como se quisesse emitir um último despedir. Por isso descrevemos esse fenômeno como último suspiro de morte e, pode ser isso o quê ocorreu com seu filho.

     Nesse momento o doutor Dionísio entrou no centro intensivo...

     – Que bom que o senhor chegou, doutor.
     – O que houve Clemente? – O doutor inquiriu o enfermeiro. – Tudo bem contigo, Júlio? – E cumprimentou-me.
     – Tudo, doutor – respondi.
     – O que houve? – Ele questionou Clemente de novo.
     – É que o Vinícius despertou doutor...
     – Despertou? – Doutor Dionísio interrogou com olhos surpresos.
– Despertou. E eu comentei com o senhor Júlio que isso pode ser somente o que descrevemos como último suspiro de morte.
     – Certo. Eu quero discorrer contigo um minutinho, pode ser? – O médico intimou o enfermeiro.
     – É óbvio que pode doutor – Clemente concordou e despontou de perto de nós, do doutor e eu.
     – Espere-me um pouquinho, seu Júlio, só preciso discutir uns pormenores com o enfermeiro e logo converso contigo.
     – Tudo bem, doutor. Eu lhe espero.

     Eu pude ouvir um pouco do colóquio entre os dois...

     – Que negócio é esse de último suspiro de morte, Clemente? Você é louco de dizer isso?
     – Eu só quis impedir um súbito e mentiroso otimismo do seu Júlio.
     – Como “eu só quis impedir um súbito otimismo”? Otimismo é bom, é muito bom! Esse vulgo termo “último suspiro de morte” é um negócio nosso, difundido e que deve morrer dentro do corpo clínico, somente. Um doente – ou ente querido do mesmo – ouvir isso é um crime. Espero que você evite repetir este equívoco, ou terei que repreendê-lo.
     – Desculpe-me, doutor – escutei o enfermeiro dizer. – Me desculpe.
     – Pondere seus dizeres, Clemente... Pondere seus dizeres...

     – Oi Júlio – o doutor veio em meu sentido, com um sorriso fingido no rosto, e pose de semideus.
     – Que negócio é esse de “último suspiro de morte”, doutor?
     – É, Júlio... Isso é verídico. Pode ser isso sim. Só que me deixe vê-lo primeiro. Depois disso é que poderei ter um juízo clínico correto e, no momento em que conseguir isso, eu te ligo.
     – Como, doutor? Eu preciso ter conhecimento do que o meu filho tem.
     – Eu sei Júlio. Só que eu preciso de um estudo sério, preciso de tempo. Temos que cumprir todos os procedimentos. Fique sereno, no momento em que tiver um prognóstico eu te ligo. Confie em mim...
     – Tudo bem, doutor... Cuide do meu filho.
     – Confie em mim, Júlio.

 
***

     Foi doloroso ver meu filho desperto e ter que ir, porém, consenti e, empós ouvir o doutor eu despontei do centro intensivo. Com os olhos procurei Uriel nos corredores, só que desisti por ver os diversos corredores desertos. Desci, sumi de perto do pronto-socorro e fiquei percorrendo pelos becos do entorno.
     “O Uriel... Como ele pôde sumir desse jeito?” – Refleti no momento em que me lembrei do guri que me retirou ébrio do boteco. – E por que sumiu? – Fiquei inquirindo-me.
     De repente veio-me em mente de que no corpo de bombeiros fosse possível eu obter um indício do menino, e rumei...
No recinto fui recebido por um tenente (vi escrito no uniforme dele), jovem, ereto, de poucos dizeres.
     – Tudo bem, tenente? – O questionei.
     – Tudo. E o senhor?
     – Estou bem...
     – E o que quer dos bombeiros?
     – É sobre um incêndio que houve num prédio verde, perto do Fórum...
     – E o quê que tem?
     – É que eu conheci um menino residente do prédio. Ele sobreviveu, só que perdeu todos os entes queridos no ocorrido.
     – Ninguém sobreviveu senhor! – O tenente disse.
     – Como ninguém sobreviveu se eu conheci um menino, de nome Uriel, que me discorreu sobre o incêndio?
     – Sobre o quê o senhor ouviu, eu pouco sei, porém, estive no prédio e lhe confirmo que ninguém emergiu vivo do inferno que o prédio tornou-se. O fogo começou no térreo, o incêndio subiu e consumiu muito ligeiro os pisos superiores. Foi impossível um indivíduo sequer correr. Morreu todo mundo. Foi horrível... Foi horrível. – O tenente concluiu incisivo, sem que me fosse possível emitir um pio sequer de protesto.
     – Tudo bem – desisti de insistir com o jovem bombeiro.
     Pensei em Uriel e no que ouvi do bombeiro e, fiquei confuso. Só que por súbito impulso lembrei-me do nome do cemitério dito pelo menino: Cemitério dos lírios. Meu destino seguinte...

     Depois que enfrentei um longo tempo espremido no metrô e no ônibus, no cemitério eu cheguei. Procurei o coveiro e o questionei sobre os mortos do prédio verde.
     – O senhor segue reto e volve no quinto corredor, perto dos ipês roxos.
     – O senhor é muito gentil – elogiei o solícito coveiro. Depois segui por onde ele me orientou.
     No corredor que o coveiro indicou-me eu cheguei depois de uns cem metros percorridos e, fiquei perplexo com o que vi: Dez... Vinte... Um monte de cruzes verdes. Os mortos do prédio verde. Olhei no entorno e por um momento pensei que fosse ver o pequeno Uriel, choroso, sobre os túmulos de seus entes queridos, contudo, nenhum menino eu vi, somente o silêncio, os lírios, e cruzes. Li os inscritos nos túmulos, muitos jovens entre os mortos e, depois de ler uns cinco ou seis eu vi um que gelou o meu espírito: Uriel, doze verões vividos, um menino lindo, bondoso.
     “Meu Deus”... Fiquei perplexo, mudo, cheguei perto do túmulo e chorei, chorei muito sobre o sepulcro do menino.

     Triiiimmmm... Trimmmm... Meu telefone gritou e tremeu dentro do bolso direito de meu terno e, tirou-me dos enlevos em que estive por segundos. Peguei o telefone e vi o número do médico no visor...
     – Oi doutor – o recebi com desespero.
     – Oi Júlio... Dê um pulinho no pronto-socorro, por obséquio.
     – O que houve doutor? O que houve? O meu filho morreu? – Entrei num misto de medo e horror, pensei no pior, senti meu peito doer.
     – Júlio! Júlio!
     – Oi doutor... – Continuei ouvindo, triste.
     – O tumor do seu filho sumiu, Júlio. E eu...
     – O quê, doutor? – Esqueci o telefone e gritei feliz, tremendo. E de repente pensei no menino. “O pingente de ouro” – lembrei-me do presente recebido por meu filho.
     Desliguei o telefone e chorei de novo, entreguei-me sobre o túmulo fresco e cheio de flores do menino, juntei os punhos e rezei:
     – Querido, desculpe-me por ter sido um monstro contigo. Deixei-lhe com fome e com frio, contudo, você ignorou o meu desprezo e foi bondoso comigo, com meu filho. Envergonho-me pelo que fiz, desculpe-me.
     Nesse momento o meu choro intensificou-se.
     – Virei sempre lhe ver, Uriel. Terei sempre teu nome e teu rosto presentes em meu peito, como um presente de Deus que cruzou meu destino. Um Deus que julguei de um modo vil e injusto.
     Sentei-me perto do túmulo do menino e fiquei por um bom tempo reconhecendo o que o pequeno Uriel fez por mim. Pensei no que o doutor me disse e senti-me feliz. O fresco dos Zéfiros com perfume de flores beijou meu rosto, o horizonte tornou-se colorido, lindo e, o gosto pelo viver voltou. “Meu menino vivo, que sonho”...
     Desculpei-me com Deus pelos diversos insultos que lhe proferi, pelos juízos que Dele fiz. Olhei de novo o túmulo do pequeno Uriel, peguei um lírio no corredor – perto de um ipê roxo –, o beijei e o coloquei sobre o sepulcro do menino e, com um singelo sorriso no rosto, despedi-me.
     Sequei o choro, ergui-me e voltei em pulos pelo mesmo corredor. Um novo gosto pelo viver inundou meu espírito. Corri feliz, querendo ver o meu filho, sem me esquecer de Uriel e do presente que ele me trouxe, o misterioso pingente de ouro...

 
...fim.

 
Este é um dos contos do meu livro:
"O sonho de ser escritor".



Obs.: Este conto e o livro mencionado acima, são "lipogramas".


 
Elder Prates
Enviado por Elder Prates em 05/11/2011
Reeditado em 02/07/2015
Código do texto: T3318842
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