O dia de morrer


     Aconteceu que naquele dia ele decidira morrer. Há dois anos vinha alimentando pacífica e silenciosamente esse desejo fúnebre como uma solução para o desengano e a desesperança que lhe tomaram o ânimo de vida. Desde o dia que soubera do médico qual o resultado da biópsia que fizera, nunca mais teve como dormir tranqüilo. Insistentemente uma voz lhe atormentava o juízo: –Por que aconteceu comigo? -Tanta gente ruim por aí e eu que passei a vida seguindo os ensinamentos cristãos - fazendo o bem sem ver a quem - vejo-me agora condenado a uma doença cruel e intratável! Era uma tortura saber-se doente e não haver a cura para tal estágio da moléstia. Maquinava em seus pensamentos uma maneira eficaz de por fim à existência de uma forma rápida e indolor. Por duas vezes esteve à beira da morte durante a sua vida. Uma, aos quinze anos, quando quase se afoga num açude de uma cidadezinha do interior; outra, quando sofreu uma parada respiratória na recuperação de uma cirurgia na coluna. Esses episódios estavam relacionados à asfixia e estas situações criaram nele uma profunda fobia. Um medo desmedido de ficar sem o ar vital tão precioso.

     Fumava desde os 13 anos. Fora iniciado por colegas do ginásio em incursões noturnas à caça de garotas para namorar. Era elegante e charmoso o ato de fumar. Todos fumavam. Todos que ele admirava e procurava espelhar-se. Fumar era a chave para o sucesso. Trinta anos de tabagismo e duas carteiras de cigarro por dia esburacaram os seus pulmões em dispnéico enfisema associado a uma amiga do peito, a bronquite tabágica. Dormia após longas baforadas no último cigarro do dia. Acordava cedinho e logo fazia a toalete peitoral. Tossia em salvas até expectorar uma grande quantidade de secreção espessa amarelo-esverdeada com odor fétido. Era deprimente o quadro.

     Fora locutor de uma rádio local e fizera sucesso por uns tempos quando ocupou o cargo de chefe de cerimonial do Palácio do Governador, que por coincidência era dono da emissora em que trabalhava. Era dado a exagerar e rebuscar nos elogios durante as festivas cerimônias de apresentações dos convidados dos altos escalões do poder. Achava-se importante à época, mas o tempo e as intrigas políticas o empurraram para um certo ostracismo e distanciamento dos cenários palacianos. Resignara-se com a situação e aquietara-se no o cotidiano dos programas musicais diários, os noticiários nacionais e internacionais, os aniversários, os casamentos e o obituário. Lembrava-se do início da carreira como locutor numa difusora de um parque de diversões itinerante. Nas festas paroquiais apinhadas de gente de todas as idades , impostava sua voz : – Essa música vai para a moça de laço amarelo que se encontra na barraca de cachorro-quente “O Bacurau”! E largava no ar aqueles antigos bolerões lacrimejantes que marcavam, junto com os odores dos quitutes expostos à venda, a memória dos passantes.

     Um dia percebeu que sua voz perdia a sonoridade e estava ficando rouco. Fez uns gargarejos de casca da romã, raspa de gengibre e nada. –Deve ser por causa desse cigarro nojento que você não larga! Disse-lhe a mulher à mesa, na frente dos filhos. -Vê se toma coragem e vai falar com um médico! Postergou a visita, mas, como não melhorava, viu-se obrigado a ir falar com o doutor. O clínico examinou sua garganta e ao vê-la alterada prescreveu antibióticos e antiinflamatórios. Depois de uma melhora discreta os sintomas pioraram. Voltou outra vez ao consultório e o médico encaminhou-o a um especialista. –Otorrinolaringologista! É só ele que tem os aparelhos pra examinar direitinho a sua garganta.

     O especialista,durante o exame óptico com o aparelho, olhou-o de uma forma preocupada e lhe disse que precisava fazer uma biópsia de um tumor que identificara na laringe. Aquiesceu com a cabeça , fechou os olhos e aguardou temeroso pelo resultado. Uma semana depois, o veredicto: - É um câncer. E a coisa é séria! Precisamos operar o quanto antes! Desesperou-se, chorou muito, esperneou, maldisse o vício do tabagismo, mas por fim cedeu e submeteu-se a cirurgia. Acordou no outro dia na UTI e aí percebeu que não podia mais falar. Respirava com dificuldade por um tubo inserido através do seu pescoço. De vez em quando se engasgava com o sangue e o peito enchia-se de catarro obrigando a enfermeira a aspirar às secreções pelo dito tubo metálico que lhe atravessava a garganta. Recuperou-se penosamente daqueles padecimentos, mas, ao constatar que não poderia mais falar, um misto de revolta, desespero e tristeza lhe invadiram a alma. Respirava por uma abertura naquilo que outrora se chamava laringe. Um patético tubo oco niquelado aí se inseria e lhe fazia às vezes de boca e nariz para poder respirar. Estava um trapo. Passara-se um ano e meio em infindáveis sessões de quimioterapia e radioterapia. Caíra-lhe os cabelos. Emagreceu até se tornar caquético. Mas o pior é que ainda fumava! Sim, fumava pela cânula que lhe implantaram. Sentia-se o mais triste e indigno homem na face da terra. Não conseguia largar o vício e, se ia morrer mesmo, morreria fumando.

     No dia que recebeu a informação de que era maligno o seu tumor, cuidou de esconder o revólver cal. 38 para que não o tirassem dele. Sua mulher o olhava com um misto de pena e revolta por supor que aquele sofrimento poderia ter sido evitado. Seus filhos choravam por vê-lo naquela situação. Sofrendo com as dores que lhe dilaceravam o corpo enfermo sentiu que era chegado o momento de dar cabo à vida. Não havia mais expectativa de uma sobrevivência digna. Os antigos amigos evitavam as visitas por sentirem-se constrangidos, assim como ele, com toda a situação. Pôs a arma e uma corda dentro de um estojo de ferramentas e rumou para a rua. Pegou um táxi e foi ter ao edifício mais alto da cidade. O porteiro, um baiano aposentado pelo INSS, abriu-lhe a porta do terraço no 18º andar ao ver suas credenciais de radialista e ao ler um documento forjado afirmando que ele estava fazendo uma inspeção à antena transmissora instalada no prédio.

     Sozinho, no último andar do prédio, ele olhou serenamente para o belo e triste panorama da cidade. Observou às suas costas um imenso outdoor de uma conhecida marca de cigarros e, lançando a corda, amarrou-a nas vigas de madeira que o sustentavam. Fez um laço com a outra ponta e o amarrou em seu pescoço. Com esforço sobre-humano equilibrou-se no parapeito. Apontou a arma para a têmpora direita. Não pensou em mais nada. Estava em transe e se viu de volta às reminiscências alegres de sua infância. Engatilhou a arma. Ouvia nitidamente as risadas e conversas dos amigos e parentes numa longínqua época esquecida na memória. Inspirou o ar profundamente através da cânula,  pela última vez e, com um estampido seco, estourou os miolos. O corpo caiu inerte e foi contido subitamente em sua queda pela corda que agora enforcava o suicida. 
     Em sua carteira de cédulas depois encontraram o seguinte bilhete: Não há razão para atentar contra a minha própria vida, mas, também, não há razão para sobreviver sofrendo à espera da morte. -Fui!

* Quadro "Solitude". De Thomas Moran.
Edmar Claudio
Enviado por Edmar Claudio em 05/01/2007
Reeditado em 24/08/2008
Código do texto: T337287
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