Amor Próprio

Amor Próprio

(Renan Gonçalves Flores)

Às vezes ligamos a televisão e vemos no noticiário as imagens de um sequestro. Uma pessoa mantida cativa ante o pagamento de uma certa quantia em dinheiro. Ou então vamos ao cinema e o lançamento do momento é mais um daqueles filmes sem um mínimo de história, mas repleto de cenas de violência e tortura. Os horror-porn. Esse tipo de coisa parece andar muito na moda ultimamente. Defendo minha teoria usando os numerosos sites disponíveis na Internet sobre o assunto.

“A vizinha ao lado se suicidou. Tomou um monte de calmante e ficou em coma. O quê? Sei lá, dizem que o namorado engravidou ela e sumiu. A mãe já tinha expulsado ela de casa”. Cenas como essa têm se tornado muito comuns. Mais e mais jovens têm optado pelo suicídio como uma maneira rápida e fácil de redenção. Alguma coisa está acontecendo, e não notamos, porque, no fundo, somos estúpidos demais pra entender esse outro tipo de inteligência.

Aos depressivos, bulímicos, anoréxicos, auto-mutiladores, ex-suicidas e aspirantes não é necessário ler este parágrafo.

Fiz essas pequenas menções porque, antes do conto em si, gostaria de causar um questionamento ao leitor despreparado. Suicídio. O que leva alguém a cometer tamanha atrocidade contra a pessoa menos culpada de seus problemas, ela mesma? O que passa na cabeça de uma pessoa segundos antes de manchar o chão com o sagrado líquido que lhe percorre as veias? E todo o planejamento, semanas, meses com o pensamento absorto num único e último desejo? Qual o encantamento que apaga os últimos vestígios da esperança, encarcerando sua vítima numa gaiola de loucas idéias?

Antes de questionar, julgar ou crucificar vocês talvez antes devessem procurar entender o que é o suicídio para um suicida. Não quero que ninguém aqui se torne um suicida, nem que experimente os pensamentos destes. Vocês não aguentariam a pressão. É como tentar evitar olhar uma linda moça que se prostra à sua frente, pedindo por seu amor. É exatamente isso. A morte, negra dama por todos temida devido ao escuro fardo que carrega, apresenta-se ao suicida da forma mais bela possível, seduzindo-o por seus tortuosos caminhos de letargia misericordiosa. A morte é puro desejo. Puro delírio. Puramente infantil.

O que eu pretendo questionar aqui é não só a estranheza da natureza humana, mas o valor que concebemos à vida. O real valor estaria na vida em si ou na qualidade da mesma?

***

Ele estava em seu quartinho de fundo alugado. Deveria estar trabalhando. Todos trabalham. Ele não. Não tinha emprego e isso já fazia tempo. Uns oito meses, segundo meus cálculos. Mas isso não era culpa sua, coitado! Ele bem que tentava, juro, mas a verdade é que ele não passava de um imbecil. Tadinho. Tão imbecil que nunca teve nada. Dinheiro, amor, amigos. Ele não tinha vontade de nada. Ele não tinha vida.

Sua família? Bem, vou lhe contar uma pequena história. Existia uma casinha e nessa casinha moravam o papá, a mamã e o filhí. Papá era peão de obra e ganhava um salário miserável. O que não gastava com bebidas gastava com vagabundas. Chegava em casa alcoolizado e descontava seu torpor na família. Já mamã era uma puta-vagabunda-traidora-tepeêmica-gorda-peituda que, todos os dias, quando papá ia para o trabalho, trazia seu amante, um ladrãozinho de merda, pra casa. O filhí apanhava das crianças na rua, por isso tinha que ficar em casa. Todos os dias era obrigado a ver sua mãe trepando com aquele estranho, já que a casa era de um cômodo só.

Papá e mamã brigavam muito. Papá espancava mamã. Quando papá saía, mamã espancava o filhí. Aos 15 anos filhí fugiu de casa. Procurou emprego, mas ninguém queria um vagabundo que nem sequer o ensino fundamental havia terminado. Começou a se prostituir. Não sabia o que estava fazendo. Não queria aquilo, mas o que na verdade ele queria? Aos 18 descobriu que tinha HIV. A enfermeira do posto de saúde lhe disse “Você tem que parar de dar o cu”. Embestado, acostumado a receber ordens sem as questionar, ele parou dar o cu.

Como ele veio parar aqui neste quartinho de aluguel sujo e úmido não vou contar, pois precisaria estender demais esta história. A você basta saber que o pobre coitado estava ali porque estava.

Ele estava em seu quartinho de fundo alugado. Eram três da tarde. Estava deitado de lado num monte de trapos velhos (ele os chamava de “Colchão”). Perto dele havia um bilhete rabiscado. “Seu aluguel venceu faz 2 mês, se num paga te boto pra fora”. A dona do quarto era uma viúva velha e gorda, abandonada por seus filhos, tendo como único consolo seus maços de cigarro e um gatinho chamado Tito.

Garrafas e mais garrafas de cerveja espalhadas. Ele nunca havia bebido antes. Uma poça se formava no chão perto dele. Uma mistura entre aquilo que escorria de seus olhos e aquilo que escorria de sua boca. Não mão que há pouco segurava uma garrafa de cerveja havia uma navalha. Ele apreciava-a. “Desespero” é o nome que damos à mistura de álcool e tristeza. Ele também apreciava isso. Mais que tudo, ele apreciava uma coisa inédita – finalmente ele queria alguma coisa!

A navalha revirava em sua mão, refletindo um brilho pálido sobre o rosto daquele infeliz. Entoava uma melodia fina e sensual. Seu corpo gelado pedia para ser tocado. Suas formas metálicas pediam para ser apreciadas. Como uma amante ciumenta e possessiva exigia sua atenção. Usava-se de todos os seus recursos eróticos. Ele fora pego. Os dois se olhavam. Se tocavam. Frio na barriga. Aquele medo antes do mergulho.

Garrafas e mais garrafas de cerveja espalhadas. Ele nunca havia bebido antes. Uma poça se formava no chão perto dele. Uma mistura entre aquilo que escorria de seus olhos e aquilo que escorria de sua boca. Um terceiro elemento veio se juntar à mistura. Ao contrário dos outros dois, este era cheio de cor, dum vermelho bem vivo. Vida. Era exatamente isso o que ele representava. Escorria em abundância de seu pulso.

Ele recostou-se na parede satisfeito por degustar de uma falsa sensação de felicidade. Deitou. Estava tudo terminado, tudo o que lhe restava agora era aguardar preguiçosamente pelo sono definitivo...

“Olhe pra mim...”

Ele continuou deitado, reconfortado pelo aconchego funesto.

“Olhe pra mim...”

Olhou em volta. O quarto estava escuro. Achou ter ouvido algo. Devia ser algum tipo de delírio pré-mortiniano.

“Levante-se... olhe pra mim...”

Agora tinha certeza de que estava ouvindo vozes. Tentou se levantar. Já estava cansado.

“Venha a mim...”

Se arrastou pelo quarto à procura da voz. Olhou para a janela, para os cantos e nada. A voz vinha de dentro.

“Venha a mim...”

Sem saber mais pra onde olhar, ele olhou para a poça de sangue que se formava no chão. Na escuridão do quarto, trespassada por feixes de luz vindos da janela obstruída, teve a impressão de ver um rosto na poça. Um rosto feminino. Arrastou-se até perto dela para ver melhor.

“Chegue mais perto...”

Estremeceu. Hesitante continuou se arrastando. Agora tinha certeza do que vira. Não era uma alucinação. Via nitidamente um rosto feminino formando-se na poça de sangue.

- Quem é você?, perguntou.

- Eu sou o amor próprio.

- Amor próprio? Que isso?

- É aquilo que todos temos dentro de nós, bem fundo lá no coração. É um amor revoltado que desatina ante seu próprio egocentrismo amoroso. Você conhece o amor?

- Hmm... Já ouvi falar.

- Pois é daí mesmo que eu venho. Mas eu não sou o amor. Sou o “amor próprio”. Sabe, por mais que ninguém goste de você, por mais que nada dê certo e você possa se odiar por isso, eu estou sempre lá. Alguns me chamam de “piedade”, outros de “pena”. Mas sou o amor-próprio; venho do amor, mas não sou a mesma coisa.

Sem entender muito bem o que ouviu, o pobrezinho não fazia idéia do que dizer. Nunca conversara com nenhum amor próprio antes. Nem ao menos sabia quem era esse tal de amor. Sempre passou bem longe de nosso protagonista. Juntando toda a covardia que tinha conseguiu um pouco de coragem e perguntou:

- O que você quer de mim?

- Alimente-me...

Olhou para a navalha ao lado de “Colchão”. Olhou para o amor próprio que fez-lhe um sinal de afirmação. Segurou a navalha entre seus dedos trêmulos. Hesitava sobre como deveria proceder. Tinha medo. Seu pulso ainda doía muito. Não queria cortá-lo de novo. “Prometo que não vai doer nada”. Encorajado pelo amor próprio levantou a navalha acima de sua cabeça. Estendeu o outro braço, deixando o pulso bem à mira. O sangue já coagulado e seco formava estranhos desenhos em seu braço. A navalha reiniciara seu canto sedutor. Ele não conseguia resistir. Como dois amantes separados por uma briga boba os braços foram se aproximando lentamente, lentamente... Encostou a lâmina no pulso cortado. Não estava mais gelada. Parecia que estava quente. Confortavelmente quente... Apreciou a sensação recém descoberta acariciando a ferida com o afiado pedaço de metal. A sensação ia crescendo, apossando-se de seu corpo, de seus pensamentos. “Não vai doer nada”. Sentia o hálito quente de amor próprio em seu ouvido, as palavras sussurradas chegando como que trazidas por uma suave brisa de verão. “Não vai doer nada.”

Abriu os olhos. Estava feito. O pulso estava violentamente aberto. O sangue jorrava como de uma fonte subterrânea descoberta nas profundezas de sua carne. “Riqueza! O petróleo da vida! Estamos ricos! Ricos! Milionários! Bilionários! Precisamos de mais e mais e mais e mais”. Enterrou a navalha ainda mais fundo. Amor próprio gemia de prazer enquanto a poça, alimentada por seu sangue, crescia. “Mais... não pare... por favor, mais... muito mais...”. Cortou a mão, o braço, o ombro. Fez o mesmo no outro braço. “Ahh... mais... ma...”. Realmente, não doía. Muito pelo contrário! Era bom. Era como uma carícia, um afago. Aonde mais poderia fazer? No peitoral. No peitoral? É, no peitoral. Cortou-o todo. Os mamilos, o umbigo. Cortou até suas costelas aparecer. “Continue...”. As pernas, os pés. “Estou sentindo o orgasmo chegando”. Cortou os tendões. Não podia mais andar.

A poça crescia e crescia, tomando a forma de uma voluptuosa mulher. Surgida da poça, tomando a forma de uma pessoa de pé, ela veio caminhando em sua direção. Andar sensual, lento e provocante. Ela chegou perto dele. “Me ame...”. À medida que ela se assentava em seu colo a navalha chegava cada vez mais e mais perto de seu pescoço.

Os dois fizeram amor.

***

Quando Dona Matilde arrombou a porta do quarto, quase teve um ataque do coração. Um cheiro nauseante de carne em decomposição impregnava o ar daquele quarto todo fechado. Garrafas e mais garrafas de cerveja, algumas quebradas, espalhadas por todos os cantos do pequeno quarto. Sobre um monte de trapos estava o corpo do rapaz, coberto de sangue coagulado e gangrena. Seu corpo encontrava-se repleto de violentos cortes. Em sua mão uma navalha. Sem sombra de dúvidas suicídio. Mas que tipo de louco seria capaz de chegar àquele extremo? Que tipo de maníaco aguentaria a dor de todos aqueles cortes, em todas as regiões do corpo? Mais que isso. Não é conhecido nesta terra um único homem capaz de arrancar a própria cabeça usando uma simples navalha, uma pequena e simples navalha!

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 08/01/2012
Reeditado em 08/01/2012
Código do texto: T3428463
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