Cenas Da Rehab

1.

- Pode me dar um cigarro?

(ele passa o maço e o isqueiro).

-Porque está aqui?

-Cocaína & medicação para emagrecer.

-Sua primeira vez?

-É.

-Estou aqui pela quinta vez. Só pra cara dos meus velhos! Não vou parar, cara! Vou morrer muito louco. Meus pais me internam e eu recaio e depois ou volto pra cá e recaio de novo e assim vai desde os 17 anos.

-Quantos anos você tem?

- 24...

2.

Alvoroço no pátio. Alvoroço nos corredores. Merda. Entrou droga ou alguém fugiu pulando o muro? Reabilitação é assim mesmo. Feito tribunal e cadeia. Quando tem muito silêncio, sossego e disciplina algo errado está acontecendo. Muito errado. Grupinhos se formam e começam a discutir acaloradamente. Permaneço no alto da escada. Cigarro entre os dedos e o isqueiro prestes a ser acionado. Escuto ou entreouço que os parentes de alguém conseguiram colocar erva ou pó ou algo proibido dentro da ala. Minha espinha congela. Merda. Estou aqui para me livrar do vício, porra! Não quero nem pensar. Meus olhos percorrem o perímetro e desço finalmente a escada e encosto-me a uma pilastra para fumar. Acendo o bastão de nicotina e dou uma longa tragada soltando a fumaça em esferas quase perfeita. Os enfermeiros em polvorosa. Os agentes de saúde e assistentes sociais e psicólogos com uma expressão comprida e grave em seus rostos cruéis. Vejo seringas com “sossega leão” por onde quer que olhe. Deve ser minha imaginação. Três e quarenta da tarde. É isso que meu relógio de pulso informa. Não consigo discernir o alarido. Seres humanos passaram a balir, latir, miar, mugir, coaxar, ciciar. Penso que quero sair daqui pela porta da frente. Boca fechada não entra mosca. Finalmente termino o cigarro e acendo outro com a brasa do primeiro. Ouço um suspiro abafado. Foi apenas um maluco que ganhou a rua se aventurando pela muralha de oito metros. Vai ter contagem diária é o que o terapeuta nos informa na próxima reunião. Merda. De novo.

3.

Ela tinha treze anos! Segundo internamento. Alcoolismo grave. Seu consumo? Cinco litros daquele vinho tinto doce pavoroso de Campo Largo. Parecia uma menina legal quando você conversava com ela. Tinha um delicioso sotaque caipira carregado no “r”. Uma criança apenas. Sua bunda e seus seios estavam apenas em botão. Era gordinha como são quase todas as pré-adolescentes. Eu ficava me perguntando quem teria sido o filho da puta que a teria iniciado na bebida. Provavelmente a velha história da chupeta mergulhada no álcool para o bebê dormir tranquilo e não atrapalhar os pais. Jogava truco e cacheta feito profissional. Apostava cigarros e sempre tinha algum para alguém em dificuldade. Uma menina doce e ingênua que talvez não conhecesse o que é ser adulto. Parecia meiga e terna.

Uma tarde o Grupo de Oito foi acionado, pois ela tinha agarrado o pescoço da psicóloga. Oito marmanjos grandes e fortes com barba na cara não conseguiam contê-la e parecia possuída por vários demônios que a levantavam do chão em grotescos espasmos e convulsões. Ficou três dias na Unidade de Desintoxicação sendo violentamente sedada...

4.

Quinta feira vem os “voluntários” lhe trazerem uma palavra de “esperança e conforto”. Naquela noite um casal chegou e eu estava sentado fumando com um grupinho. Ele um homossexual afetado e arrogante óbvio. Crack era o seu dilema, me disse bem depois com uma voz chorosa de viciado terminal à ponto de voltar a ativa. Ela uma deusa cheinha metida num vestido inteiriço preto e justo o qual dava para se notar perfeitamente suas formas generosas, olhos verdes como jade, um sorriso largo de dentes brancos e perfeitos e cabelo negro feito asa de graúna. Altamente simpática e atenciosa puxou conversa comigo. Perguntei gracejando onde ela estava indo tão bonito e elegante. “A uma apresentação de jazz”, me contou. Apresentação de jazz, babe? Eu pensava. Apresentação de jazz uma porra. Vai é na cobertura de um amigo seu que não precisa se preocupar com a grana que o papai banca, para cheirar todas as fileiras.

Então ela me falou que queria muito me reencontrar quando eu saísse de lá, pois poderia me ajudar em minha reabilitação e que eu parecia um cara inteligente que viveria muito bem sem as drogas e esse papo furado todo. Pedi seu telefone e então me disse que não podia em hipótese alguma se relacionar com os internos. Pois sim.

5.

Onde eu estava internado era uma instituição de filosofia espirita kardecista. Não me lembro, em centenas de reuniões de grupo que participei em mais de quarenta dias, de nenhuma palestra sobre o assunto. Só falavam em vicio, famílias desestruturadas, disfuncionais e destruídas, empregos perdidos, tragédias cotidianas, depressão clinica, tratamento de choque químico, “Grupo de Oito”, contas bancárias com saldo negativo e todas as miudezas. Em nenhum momento me disseram nada sobre, amor, compaixão, meditação, compreensão, tolerância, caridade...

6.

Em todo o lugar que se vá existe o figurinha encrenqueiro. Você sabe exatamente do que eu estou falando. E na clínica não era exceção. Chamava-se Marcelo. Viciado em vícios. Sabe como é. Enésimo internamento. Chato. Mimado como todo adicto. Manipulador. Cheio de vontades. Orgulhoso. Impulsivo. Autodestrutivo. Imaturo. Quociente Emocional abaixo de zero. Não se considerava doente então decidiu não entrar em grupo e se isolar. Quem bancava seu tratamento era seu patrão velho e gay e ele tinha uma namorada suburbana que nos dias de visita vinha lhe trazer maças e cigarros. Até que era bonitinha para uma suburbana. Novinha. Os vi várias vezes discutir. E ele discutia com todo mundo. Inclusive, tentou levantar a voz para mim e levou a pior. Então tentou ficar meu amigo. Decidi que podia, pois uma vez na rua poderia enrolar uma desculpa qualquer. Não queria arrumar briga e tomar um gancho ou pior ainda ser expulso e perder o tratamento. Então assenti. Quando eu estava no meu canto escrevendo em meu caderno ele vinha por sobre meu ombro espiar o que eu estava fazendo. De vez em quando lhe mostrava os textos mais amenos. As confissões que eu fazia ao caderno eram apenas minhas. Quando tive que escrever e apresentar minha autobiografia, foi para ele que fiz a leitura inicial. Ficou enlevado e me disse que parecia uma página de um romance. Agradeci-lhe e lhe dei um sorriso. E continuava aprontando dentro da clínica. Insultos e pequenos incidentes. Um dia foi embora mesmo sem concordância da junta médica. Agora eu teria um pouco de paz.

Quatro dias depois alguém aparece com um jornal popular. Daqueles que noticiam resultados dos páreos, futebol e muito crime. Marcelo tinha assassinado brutalmente a sua namoradinha suburbana a facadas num hotel sórdido da Rua Tibagi e estava preso. Imaginei por quanto tempo ficaria vivo.

7.

O problema do tratamento para a doença progressiva e incurável que temos é primeiramente que dizem que não existe uma literatura especifica sobre drogas. Mentira deslavada. Bravata da mídia que quer promoção e do governo que quer continuar destinando verba para o combate desse “mal” que na verdade é apenas mais dinheiro para a corrupção. Ora, legaliza-se tudo e acabou a propina das polícias e dos lobbys dos deputados que se escoram no tráfico e nas comunidades carentes para granjear votos. Existe uma literatura secular sobre isso. Quem nunca leu o “Memórias de um Comedor de Ópio”, ou “Junky”, ou até o prosaico “O Que é Toxicomania” é que vem com essa lenga lenga. Ou seja: apenas o “cidadão de bem” que já foi dito aqui só serve para consumir e votar errado. Você entrou em tratamento não importa o que você usa. Álcool. Barbitúricos. Anfetaminas. Cocaína. Boletas de todos os tipos e cores. Cristal. Maconha. Na concepção desses monstros de jaleco você é um DROGADO. Um VICIADO. Aí colocam todos na mesma panela e classificam como farinha do mesmo saco e depois ficam reclamando e choramingando pelos cantos dizendo que somos uns inúteis, uns farrapos sociais que não querem se curar e se lamentam e se frustram porque recuperam tão poucos. O primeiro passo para a recuperação, amigo, parte de você mesmo.

Curitiba, 10 de janeiro de 2012, 28 graus – Verão.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 10/01/2012
Código do texto: T3432773
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.