Uma certa tia Dodói

Todo mundo tem ou já teve uma tia Dodói. Aquela mulher nem sempre frágil, nem sempre magra ou gorda demais, nem sempre pálida, mas invariavelmente com uma dorzinha aqui ou ali. Quando está boa, mas boa mesmo, queixa-se de dor de cabeça.

Hoje dói o estômago, chá de losna. Se for fígado, melhor boldo ou alcachofra. Amanhã os rins, pata-de-vaca. Ontem as costas, arnica. Alecrim, folha de laranjeira, camomila, carqueja, erva cidreira, ou tem no quintal ou na despensa.

E assim vai o dia a dia da tia Dodói. De vez em quando uma geral com um elixir de farmácia, para depurar o sangue, ou então uma visita ao médico.

- Doutor, e essa dor no lado direito? Será o fígado?

- Lado direito mais para cima ou para baixo?

- Não sei bem doutor. Acho que no meio. Lado direito, no meio. Às vezes corre para baixo. Ou para cima.

Mas a tia Dodói da Rosineti - na verdade, tia avó - era peculiar. Tinha hora certa para ficar doente. Sempre no início da noite, quando o marido chegava do trabalho.

Servia o jantar queixando-se, arrastando-se, esbanjando fraqueza. O pobre morria de pena, falava manso, carinhoso. Mal sabia ele - ou acreditava não saber - que durante o dia, tia Dodói esbanjava era saúde. Cuidava da casa, do quintal e do jardim.

- Você não vem jantar comigo? - perguntava ele, sentando-se à mesa posta com um prato só.

- Nem consigo comer, amor. Estou sem fome, meio zonza. Vou deitar um pouco - respondia tia Dodói, que já havia jantado antes de ele chegar. Você lava a louça?

Louça lavada, cozinha em ordem. Cheio de cuidados, o bom marido buscava sua sempre doente no quarto para, juntos, ouvirem rádio na sala.

- Está na hora da novela - ele lembrava.

Na namoradeira, tia Dodói, suspirando de felicidade, aninhava-se nos braços do marido atencioso para ouvir O Direito de Nascer, sucesso absoluto da década de 1940, e que chegava até o rádio capelinha através das ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Pombinhos ouvindo rádio, passaram pela fase das novelas da Nacional, intercalada com as cantoras e cantores da Mayrink Veiga. Nas ondas médias da rádio local, que varria os Campos Gerais, não sei se tiveram tempo para os primeiros sucessos da dupla Nhô Berlarmino e Nhá Gabriela.

Todas as noites a mesma coisa. Rádio, ternura, carinho. Dodói...

E assim tia Dodói virou referência na família. Criança não queria comer, já ia ouvindo:

- Você está parecendo a tia Dodói...

Quanto ao marido, seria ele santo ou apaixonado? Acreditava realmente na fragilidade da tia Dodói? Ou entrava no jogo, fingindo preocupar-se com seu estado de saúde, para abrigá-la carente e frouxa nos braços todas as noites, como parte das preliminares do que viria depois?

Aposto na segunda opção. O marido carinhoso e namorado apaixonado, que se regalava com a gostosa cumplicidade do amor e curtia muito tudo aquilo. Fazia parte.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 13/01/2012
Reeditado em 08/11/2012
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