ECA - O dom de mudar as tradições

Uma vida Transformada

Um choro abafado me despertou no meio da noite. Cansada da labuta pensei em ignorá-lo, mas minha consciência me mandava despertar. Meu corpo de 45 anos pedia paz, mas desafiei minhas forças, levantei da cama quebrada e desci as escadas de madeira, rachadas pelo tempo. Tropeçando em sacos de roupas sujas de minhas clientes, eu driblei os obstáculos para chegar até a porta.
A lavagem de roupa era o meu sustento. Mãe solteira de três meninas não tinha tempo de ver novela, me olhar no espelho e sorrir, vivia de mau humor. Nessa noite sem lua estava só. Minhas filhas haviam ido passear na casa da avó. Ao abrir a porta vi uma menina de aproximadamente 7 anos, a mesma idade de Rafaela, minha filha do meio. Ela estava abraçando as pernas com as mãos ensanguentadas. Pés descalços, vestido de chita amarelado de lama, ela aparentava cansaço. Trêmula e com olhar de terror, ela não se movia. As lágrimas escorriam pelo rosto. Eu a chamei e não tive resposta. O choro diminuiu e ela passou a soluçar baixinho. O vestido rasgado destacava a costa marcada de cinto, idênticas as que ficavam na costa de minhas filhas quando eu as repreendia.

Os braços pequenos e magros da menina caiam em câmera lenta sobre o chão podre do meu pátio, aí a peguei rapidamente no colo e gritei por socorro, mas ninguém veio. Percebi um ferimento na região do abdome e me desesperei, chamei um táxi e deixei minha carteira profissional como garantia. A carteira profissional era muito importante para mim, pois lá estava documentada a minha história. Eu sonhava em ver minha carteira ser assinada com o valor de mil reais. Com esse dinheiro compraria uma máquina de lavar e terei queijo e frutas no café da manhã.

Mas voltando a menina, pegamos o táxi e chegamos até o Pronto Socorro, aonde cheguei gritando e exigindo atendimento imediato. Depois de um breve escândalo me atenderam. Os médicos disseram que havia uma perfuração rasa na barriga, mas que não tinha afetado nenhum órgão.

Em meio aos gritos de dor das pessoas que ainda não haviam sido atendidas, fiquei pensando nas minhas filhas, nas surras que eu dava. As mesmas que eu levei de minha mãe e que minha mãe levou de minha avó. Bater em filho era uma tradição de família.
Minha mãe dizia que não se podia educar sem bater. Eu segui sua regra.

Lembro de uma vez que eu joguei a faca de cozinha em minha filha mais velha, só porque ela comeu o pão da irmã caçula. Ela podia ter morrido, mas quando a vi ilesa, peguei a vassoura e só a deixei quando a vi sangrar. Ela nunca mais tocou no que não era dela.
Lembrando das minhas atitudes envergonhei-me. Não sei por que mais quando peguei a menina ferida pensei em minhas filhas. Um grito ensurdecedor me distraiu dos meus pensamentos. Era uma mulher desesperada procurando por sua filha. Eu logo pensei: “é a mãe da menina que eu socorri”. Aproximei-me dela e perguntei como era sua filha. Ela a descreveu e eu disse que sua filha estava sendo atendida. Em prantos a mulher confessou o seu crime: “ eu não queria machucá-la, não queria!”. A mãe havia espancado a filha porque ela não queria acordar para ir à escola; a criança fugiu para se livrar da surra e acabou ferindo a barriga no ferro ao pular para o quintal de um vizinho. Enquanto a mãe me contava a cena, um carro da polícia estacionava no Hospital. Um grupo de pessoas acompanhava os policiais. Um carro do SOS CRIANÇA também parou. Os policiais se aproximaram e levaram aquela mãe desesperada. Escutei dizer que a menina seria levada para um abrigo. Falaram de um tal de Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei que pune quem maltrata crianças. Mas eu me perguntei: “ Isso vale para pai e mãe?”. E o pior é que valia, uma moça explicou um artigo para a mãe da menina ferida, dizendo que ela poderia perder a guarda da filha se fosse constatado os maus-tratos. A mãe gritou! Não se conformou. E eu fiquei de longe, ouvindo aquilo tudo e refletindo sobre minhas atitudes com minhas filhas. Eu morreria se eu as perdesse. Vivo por elas, trabalho por elas, sonho por elas. Eu não consegui sair daquele hospital, fiquei lá o resto da noite como se fosse a própria genitora. Quando ela acordou me lançou um olhar frio, distante. Aproximei-me e ela nem se moveu. Vi no seu rosto a angústia, a dor refletida em uma lágrima que insistia em cair. Nunca mais esqueci aquele olhar. Sai do quarto e voltei à rotina. Procurei informações sobre a menina e soube que ela estava em um abrigo. Descobri que a mãe era espancada pelo marido alcoólatra e descontava a raiva na filha. Quem a salvou do martírio do lar foi uma vizinha que denunciou os maus-tratos ao SOS CRIANÇA.

O fato é que minha vida mudou depois daquele dia. Quando minhas filhas chegaram, eu as abracei e pedi perdão. Elas me olharam espantadas e não entenderam, mas eu sabia por que estava fazendo aquilo, não era apenas por medo de perder a guarda, mas de perder o amor delas. Eu quebrei a corrente de tradição, tornando-me confidente de minhas filhas.

Depois de um tempo procurei saber detalhes sobre o ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Depois de lê-lo decidi dividir o tempo entre as lavagens de roupa e uma campanha para acabar com a violência doméstica. Comecei conscientizando minhas amigas a mudarem de postura com os filhos, depois fui ganhando campo, chegando a dar palestras em centros comunitários. Minhas filhas me acompanhavam; e contavam orgulhosas a minha transformação em depoimentos que me faziam chorar.

Com o incentivo das minhas filhas voltei a estudar e me formei em Assistência Social. Com o diploma na mão consegui um emprego em um abrigo onde ganho mil e duzentos reais. A menina que eu ajudei voltou para a casa depois que a mãe se separou do marido e aceitou fazer um tratamento. Não sei se ela é feliz, mas pelo menos ela não é mais maltratada porque sabe dos seus direitos, assim como a sua mãe sabe que pode ser punida se não a respeitá-la, não apenas como sua filha, mas como um ser humano.
SHIRLEY CASTILHO
Enviado por SHIRLEY CASTILHO em 15/01/2012
Reeditado em 15/01/2012
Código do texto: T3442708
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