Meninos de rua: O tempo

Passear pelo Recife é uma rotina, ainda mais quando se vive pelas ruas dessa imensa capital. Eles caminham aos montes, saindo de suas casas pontes dormitórios, muitas vezes obrigados, com a acusação de enfearem a cidade. Uma espécie de cordão sanitário impera sobre suas cabeças, forçando as constantes migrações. Uma rude realidade para esses pequeninos, onde a delinqüência já fez o seu papel, estragou-os de verdade, nas pinturas escuras de suas carnes, de seus trajes, que para muitos são ultrajes. Seus gestos rudes são da própria rudeza do ser, de suas vidas, se isso lá é vida.

Quando a vida passar por eles, um velho rolo compressor os esmagará, envelhecendo-os nas entranhas, a cada tiro na lata que eles derem, sufocando-se na fumaça tóxica das pedras amareladas, que oxidam seus cérebros; na cola de sapateiro que colam seus neurônios em algum canto perdido de suas cabeças ocas. Serão verdadeiros velhos na flor da infância, verdadeiros zumbis na puberdade e mais mortos do que vivos na adulta caminhada. São as meninas e os meninos de rua, por eles mesmos.

Do outro lado da cidade se pinta mais uma obra. Escreve-se um texto denso e doído, coberto numa nebulosidade sem fim. Lá se encontra uma criança velha, no início de sua puberdade, sem eira nem beira, à beira do grande rio.

Um distante olhar separa uma criança de sua realidade. Está às margens do Capibaribe. Uma face colada na própria miséria. A mão magra socorre as águas sujas do rio, fazendo-se de barcarola sem vela. Alguma coisa o movia para aquela cena limite. Uma chaga aberta na barriga podia ser notada ao esvoaçar da camisa que o engolia quase por inteiro. De repente uma lágrima se desprende de seu olho marrom, arrastando a sujeira do rosto. A chaga doía lá dentro da alma, enquanto ele repetia o bulir na água, raptando pequenos pedaços de mangue, arrastados pelas correntezas do velho Capibaribe.

A sensação que se tinha na dor daquele menino era uma intensa flechada em quem passava e não podia ficar alheio àquela pintura febril. Mas ele não se importava com os outros. Seu tempo estava passando muito rápido em meio àquela tarde nublada do Recife. O cais era um ponto final na velha jornada de um rebento que se perdeu no tempo e agora chora uma única lágrima para dizer-se vencido. As velhices chegaram arrastando-o e conformando-o ali naquela beira de cais. Ele estava ficando miúdo e amarelo como a pedra tóxica, que possivelmente foi a razão de sua chaga vermelha na barriga pronunciada.

Não pedia moedas. Sequer erguia a outra mão e a arremessava contra os personagens de sua tragédia particular. Quem sabe não tinha mais fome, mais medo, mais vida mesmo. Só sobrara aquilo ali, na calçada. Um corpo engolido por uma camisa da cor do chão, da cor dos seus pés. Cor de mangue.

À medida que a tarde despencava lá do alto o menino franzino ia caindo também. Levemente, aguadamente; passando por todas as vidas a que teve direito nos seus infantis anos de idade. A maré já não era alta. Ele não alcançava mais a água suja do Capibaribe. Seus dedos estavam secos, como os da outra mão. Molhado, apenas o olho que chorou a lágrima solitária, como a sua vida que se esvaziava.

A noite caiu e com ela um corpo se esqueceu de andar; ao menos rastejar. Não. Não estava mais ali quem comandava aquele ser esquelético, raquítico, sem fome, sem medo. O menino se abandonou antes de a dor se tornar mais intensa. Controlou o seu tempo até o último minuto, sincronizando-o com o tempo das coisas. Ninguém percebeu isso e deixou-o em paz sem contar a sua história. A escuridão dormiu com o menino para sempre. A chaga se curou na terra e ele se curou em todos os tempos que se passaram.