Abismo de rancor

Sentada na sala de minha casa, passando calmamente os álbuns de fotografia, olhava atentamente para o passado, observava as expressões nos rostos, inclusive no meu e sem me dar conta, me transportava no tempo e no espaço.

Olhava as festas, os batizados, alguns amigos que já haviam morrido, todos ali, mostrando que o tempo passa depressa demais. De repente uma foto me chamou a atenção, amarelada, com uma cor sombria, com um papel grosso, típico das fotos de antigamente, nem eu mesma me lembrava dela, certamente, deve ter sido mamãe que a deixou ali,quando a doença assolou seu corpo, e veio ficar uns dias comigo antes de partir. Hoje, já não sei se isso foi bom ou se foi ruim, sempre tento deixar este assunto, mas não tem jeito, acho que existe uma memória lá dentro de nós, em algum lugar, muito bem guardada, como um compartimento secreto de mágoas que tentamos lacrar á sete chaves a vida inteira, mas ás vezes, alguma lembrança nos leva pelo sombrio abismo do rancor.

Eu sempre fui criticada por não me desfazer de certas coisas, mas de papai eu não tinha praticamente nada.

Olhei a foto mais uma vez, antes de juntá-la com as outras, observei os detalhes, papai de chapéu, camisa branca, esta era exatamente a lembrança que eu tinha dele, alto, forte, robusto, estava assim desde então, era assim a lembrança dele, viva em minha mente.

A fazenda atrás mostrava suas terras, seu orgulho. Ali tinha plantação de tudo. Éramos uma das famílias mais ricas da região, mas todos tinham que trabalhar, ou na casa, ou no roçado.

Quando fui crescendo, percebi que algumas crianças da fazenda, estudavam, e eu não.

Um dia convicta que aquilo precisava mudar, pedi a papai que me matriculasse na escola, que me deixasse estudar, e o mesmo, considerou aquilo um insulto, até hoje ouço seus berros:

_Isso não tem lógica!Pra que estudar? Mulher tem que ficar em casa e cuidar dos filhos e pra isso não é preciso estudo. O homem que tem que trabalhar pra sustentar a casa e a mulher.

Suas palavras pra mim eram meu maior açoite. Tentei aprender a ler em casa, e consegui! E parecia que eu era a pessoa mais feliz do mundo, nisso eu já tinha doze anos.A noite quando todos jantavam, decidi fazer uma surpresa, certamente depois que papai visse meu esforço, não me recusaria os estudos. Fui até o calendário, que ficava na parede da cozinha, e li a frase do dia. Foi o bastante pra papai quase morrer engasgado, primeiro ele ficou vermelho, depois roxo, depois um branco apático, mamãe levantou-se correndo e foi até a pia buscar água.

Achei que ele morreria, ou me mataria! Apanhei muito, de castigo ele me amarrou em uma árvore no quintal, em pé, passei a noite ali, no início os mosquitos incomodavam, depois o som dos bichos vindos do mato.Tinha medo de saci, mula sem cabeça e de lobisomem,enfim, quase amanhecia ,e vi uma serpente se esgueirando pelo mato , gritei muito, os cães começaram a ladrar mas quando chegaram para me socorrer eu já estava desmaiada.

Mas o que era pra ser tragédia, foi a minha salvação.Fui para o hospital da cidade, e durante as horas que estive ali,li na parede um cartaz sobre o estatuto da maioridade, e descobri que em seis anos, ninguém poderia me impedir de estudar.O médico ficou abismado com a ignorância de papai, mandou chamar o delegado.Ele já sabia das maldades de papai, e mandou chamar o padre, mas ninguém nunca o convenceria a me deixar estudar, dizia ele:

_ Mulher que estuda, acaba casando com vagabundo, sustenta a casa e sustenta o cabra!

Voltamos pra casa, os anos se arrastaram e vagarosamente eu ia chegando aos dezoito anos.

Ainda lembro-me do cheiro e do frio daquela madrugada, levantei no meio da noite, vi minhas irmãs em um sono perene, a casa estava grande e silenciosa, coloquei as melhores peças de roupas em uma trouxa, passei pelo quintal e a vaca Lilás que amamentava o bezerrinho me reconheceu, soltando um mugido alto e acordando outros animais que me seguiram até a porteira pra se despedir.

As primeiras pedaladas na estrada foram trêmulas, mas nunca pensei em desistir.

Fui até a rodoviária, entrei em um ônibus para a cidade de São Paulo, com o dinheiro dos meus seis anos de economia para aquele momento, mas em nenhum momento eu olhei para trás.

Cheguei na cidade, levei alguns sustos,pedi a um padre local que me desse abrigo na igreja e em troca eu ajudaria na limpeza.Ele escreveu para o padre da minha cidade, que confirmou minha via sacra para estudar.Na cidade eu era a manchete, diziam que eu tinha me perdido, que eu estava grávida,que eu fugi com um homem casado,que eu havia me tornado prostituta ,que eu tinha fugido com o circo,enfim, que eu sempre sonhei em estudar, ninguém dizia.

Estudei, formei-me professora, me apaixonei aos 24 anos, casei-me virgem ainda, não iria dar mais esta manchete pra minha cidade, no início foi uma maravilha, depois tive que aturar um marido alcoólatra, ausente, e como não deixaria de ser... Um vagabundo.

Agüentei firme,não me divorciaria nem por nada, papai não iria ter este gostinho.

Meus filhos nasceram,cresceram,casaram-se, tiveram filhos.

Mas a tristeza da minha vida não passava, parecia que a todo tempo faltava algo. Mamãe não se atreveria nunca em contrariá-lo, e nunca foi me visitar, nem mesmo com as inúmeras cartas que mandei suplicando perdão, hoje, olhando as fotos, observo que eles simplesmente sumiram da minha história, não estavam nos natais, nas formaturas, nos aniversários, simplesmente sumiram.

Só me dei conta do tempo passando, quando o telefone tocou, pra minha surpresa, era o capataz da fazenda. Papai havia tido um derrame cerebral e precisava logo de quem?De mim, a única filha que poderia cuidar dele. Parti para o interior.

Ao vê-lo naquele estado vegetativo, fiquei triste, nada sobrou do homem forte e imponente, que várias vezes me surrou e em uma noite de fúria me amarrou ao relento, estava ele ali, de fraldas,inerte,e não pude conter as lágrimas.

Beijei-o, e ele parecia feliz em me rever depois de 40 anos, pedi que piscasse duas vezes se pudesse me ouvir, ele atendeu afirmativamente,estávamos progredindo.

Perguntei se sabia quem eu era, confirmou ter me reconhecido, e eu amei aquele regresso pra casa. Abri meu coração, falei de minha saudade, falei dos meus filhos, falei dos meus netos, da vontade que eu tinha deles conhecerem a fazenda, e ele quase sorriu. Mas de repente, me olhou com um olhar frio, quase maquiavélico, perguntei se me perdoava, e ele não piscou.Perguntei novamente para confirmar, e ele não piscou.

Perguntei se sabia que eu tinha me tornado uma professora e ele afirmou, perguntei se em algum momento desejou que eu voltasse, e ele não piscou.Foi naquela hora que eu percebi que ele quem era o errado na minha história,então tive uma idéia, fui até a cozinha,peguei a folhinha do ano, sentei-me bem pertinho dele e comecei a ler as mensagens do dia, começando lentamente no dia primeiro de janeiro. O dia mundial da paz!

Ele começou a se debater, e eu lia mais alto, ele ficou vermelho, depois ficou roxo, não respirava, as lágrimas rolavam no canto dos seus olhos,e eu sabia que se não parasse,mataria ele de tanta raiva. Mas foi o que eu fiz, continuei até ele não agüentar mais, e quando vi que faltava lhe o ar. Escrevi correndo em uma de suas mãos: Parabéns, sua filha já sabe ler. Eu venci e isso vai te acompanhar pra sempre! E aproximei a palma de suas mãos bem pertinho dos seus olhos.Em dois minutos papai jazia morto naquela cama.

Peguei meu carro, passei pela estrada que havia passado há 40 anos sem estar nervosa, muito segura e vingada, rapidinho cheguei em casa, desta vez eu já sabia ler as placas!

Izabelle Valladares Mattos
Enviado por Izabelle Valladares Mattos em 31/01/2012
Código do texto: T3471734
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