Fora do Ar

Almoço às duas da tarde. Poucos ônibus na rua. Algumas risadas de criança no pátio. Vizinhos desperdiçando água na calçada. Não havia dúvida, havia acordado no domingo. Ainda zonzo, caminhou suficientes passos com os olhos embaçados e alcançou o controle remoto da televisão. Antes que sentisse o corpo estalar, se jogou novamente na cama desarrumada. Domingo era dia de descanso, curar a ressaca, não fazer nada e assistir toda a programação internacional ao lado da namorada. Sony, Warner, People & Arts, AXN, Telecine, MTV, Fox. Cada canal tinha sua participação agendada naquele dia. Só precisava ajeitar o travesseiro, com leves socos nas laterais, aumentar o ventilador, puxar o lençol na altura do peito e apertar o botão.

“Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh”

- Mas que...

- Que foi, amor?

- Os canais estão fora do ar!

- Todos?

- Só está funcionando a Globo e...

- Não brinca! Tenta outro canal!

- To tentando! Só aceita canal aberto!

- Não acredito...

- Vou ligar na portaria.

- Portaria, Raimundo.

- Fala, Raimundo. Me diz uma coisa...

- Qualquer coisa?

- Quê?

- O senhor disse...

- Esquece. Alguém no prédio reclamou de problemas na tv?

- Reclamou, sim.

- E...

- E o quê?

- Você sabe o que aconteceu, Raimundo???

- Parece que a antena hiperbólica caiu...

- Antena o quê???

- Aquele troço que leva os “canal” importado pra tv do senhor.

- Antena parabólica?

- Isso mesmo que eu disse.

- Sei. Então só tenho os canais abertos?

- Só se o senhor abriu. Eu num mexi em nada, não.

- Quê? Bom, e tem alguma previsão?

- Num sei aí em cima, mas tá um solzão da hora aqui.

- Esquece, Raimundo.

- Tá esquecido!

- Ai meu Deus... qualquer novidade me avisa?

- Podexá!

Desligou o interfone e se comprometeu com a missão: encontrar programas de qualidade nos canais abertos. Estava sendo injusto, acharia algum que prestasse. Decidiu tentar o primeiro canal.

“Chegou a hora, queridos telespectadores!!! Apresentaremos agora, AO VIVO, o parto da Dona Aparecida, que comemora hoje, aqui no programa, AO VIVO, o nascimento de seu décimo filho!!! E tudo isso, AO VIVO!!! AO VIVO!!!”

Tentou novamente.

“Estamos aqui com esse ator fabuloso, exemplo de dedicação profissional, responsável pelas melhores atuações da televisão brasileira. Não é como os outros que vêm aqui querendo aparecer, não! Esse ator é digno, competente, sincero, humilde, consciente. Então, Marcelão, você foi mesmo pego fumando maconha??? Conta pra gente!”

E outra vez.

“LIBERTES ESTE SER MALIGNO DAS TUAS ENTRANHAS!!! Não deixeis que destroces tua alma e rasgue tua vida da carne!!! Gritais pelo senhor, mulher!!! Chameis por salvação!!! Alcanceis a graça e depositeis 80% do teu salário na conta do Senhor!!! Amém!”

- CHEGA!!!!

- Que foi, amor?

- Não agüento mais esses canais!! Tô emburrecendo!!! Não sei o que faço!

- Hummm.... tenho uma idéia...

- Que idéia?

- Humm... você sabe...

- Ahhhh.... entendi..... é uma ótima idéia, por sinal.

- Então, vem cá.... chega mais pertinho...

- Hummm... que quentinha que você tá...

- Não viu nada... hummm...

E assim a chateação dominical se transformava em prazer. Beijos amanhecidos, cama ainda quente, televisão desligada. Cada mordida no pescoço vinha acompanhada de arranhões oportunos. A falta de fôlego avisava:

- Vai!!!

- To indo!!!

- Agoraaaaa!

- Vai!!!! Vai!!!

- Agora...agora...ago...

“TRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMMMMM”

- O interfone!!!

- Deixa tocar, Maurício!!!

- Mas....

- CONTINUA!!!

- E se for importante?

- EM PLENO DOMINGO??? IMPORTANTE???

- E se for??? Melhor eu atender!!!

- Saco, Maurício!!! Vê se vai rápido!!!

Correu pelado em direção ao corredor e atendeu ofegante o fone bege. Antes que a ligação completasse um minuto, voltou sem dizer uma palavra. Sentou-se, ainda mudo, e perdeu o olhar na tela negra. Apesar das sacudidas da namorada para que dissesse algo, permaneceu pasmo. Deitou-se no seu lado da cama e, sem olhar para trás, murmurou:

- Sintonia... só amanhã...