Meninos de rua: a alimentação

O dia começa a clarear. Nossos bebês ainda dormem, os deles também. Aos poucos vão se levantando para a vadiagem forçada, empurrados mesmo pela sociedade a qual margeiam. As barrigas estão coladas. Há um duplo sentido nesta afirmativa. As barrigas estão coladas, como se costuma dizer por aqui - nas costas, pois o que se come logo some. Fica o vazio, empurrando sua magreza para trás e para frente, como aquela fome que sentem de quase tudo. Mais um vazio. Ou as barrigas estão coladas de tanto tóxico que consumiram durante a noite anterior. Coladas de cola mesmo. O alimento cola. Não acreditava que a cola pudesse diminuir a fome destas pobres criaturas. Mas é isso mesmo. Entorpecidos esquecem da fome e viajam num mundo ébrio, maluco, anestesiados de sua dor.

Os menores choramingam por comida. É a fome gritando presença. A procura começa ainda cedo. Procuram ao seu redor os indícios da comida. Começa a jornada. O grupo perambula o centro, a feira livre, os mercados. Os supermercados não, as lojas, não. Shopping, nem pensar. A entrada não é franca e eles podem pagar o alto preço por entrarem ali. Não é permitido, sob suspeita de furto. São as barreiras impostas à sua situação de excluídos. Reviram as latas de lixo, pilhas de sacos azuis, pretos, beges. A presença do cachorro ou do gato é indício de comida. Correm, reviram e acabam encontrando algo. Mas bem sucedidos são aqueles que buscam saciar a fome nos potes de lixo dos restaurantes. Comida azeda aos montes. Dormida, não recebeu nenhum tratamento adequado. Simplesmente são restos que a sociedade teima em não consumir. Teima em não querer repartir.

Mais cola para entorpecer, driblar a fome. Às vezes dá para puxar um fuminho, ficar muito louco. A violência também reproduz o fumo nosso de cada dia, o álcool nosso de todo dia. Lá também não é diferente. Nessa sociedade paralela as similitudes também são possíveis. Abre saco e fecha saco. Um movimento desesperado – a criança ainda choraminga. Calada é uma preocupação. É estar se ausentando dessa vida, partindo perdida para uma outra. É preciso saciar. Uma das saídas para a falta de comida é a mendicância. Expõem seus rebentos de olhos murchos em seus braços, nas calçadas do centro da cidade. São novas obras de arte de Michelangelo, Pietá moderna, surreal. Surreal como tudo que observamos nessa condição de seres afastados do mundo. Por que Pietá? Reparemos com estão dispostos nos braços das jovens mães, semimortos, inertes, olhar distante, seco. As chagas espalhadas pelo corpo, fruto da promiscuidade descuidada de seus pais, de suas mães. Pietá. Pietá sim. Sob uma nova roupagem, sob um novo olhar.

Ali dispostos pelas ruas, nessa galeria do novo século distribuem-se em busca de saciar a fome. A garantia para mais um dia de vida, onde quando não se morre de morte matada, morre-se de morte morrida. Um trocado por favor! Ajude-nos com qualquer trocado! Tenho catorze irmãos!

Zé Beto
Enviado por Zé Beto em 16/01/2007
Reeditado em 16/01/2007
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