SCHRÖDINGER

Uma vida normal. Chata. Sem grandes amores, sem grandes tristezas, tampouco alegrias. Nada de mais acontecendo. O tempo passando. O frio, o calor, o dia, a noite. Eventualmente, lágrimas. Seus últimos anos passaram como dias. Como saber quanto tempo passou desde que tudo se tornou rotina? O tempo não é marcado pelo relógio, mas por acontecimentos. Assim é que funciona a memória. Mesmo a dele.

Não se lembra da última vez em que saiu de casa. Ou mesmo do quarto, é um prisioneiro voluntário. Ele prefere não discutir sobre esse assunto. Arbítrio é um assunto delicado para alguém como ele. Um leitor. Toda sua vida é marcada por leituras. Livros de diversos assuntos. Muitos sobre psicologia. Ele procura entender a razão de sua vida ser assim. Sempre foi um bom leitor. Sempre estudou. Não consegue mais citar uma linha sequer. Está perdido em sua solidão. Quando isso aconteceu?

Atenção. Não muita, apenas o suficiente para ser percebido. Nunca exigiu demais. Só precisa ser ouvido. A mãe o escuta. Ele não fala muito, mas o pouco para ela é o bastante para que saiba que ele está ali. Um caso perdido, dizem. Enlouqueceu. Talvez tenham razão. Ela sabe que ele está ali. Nunca sai do quarto. De vez em quando aparece na cozinha. Silencioso como sempre. Triste? Discreto? Ela se assusta quando nota que ele está ali. - Mas eu sempre me assustei com você, não é? Pergunta se quer suco. Ele permanece imóvel perto da janela. Sempre ali, olhando algo, estudando as nuvens, avaliando os transeuntes. Nunca se sabe. Ele afirma com a cabeça. A mãe faz perguntas. Ele não as ouve, talvez o liquidificador tenha abafado sua voz. Talvez ele tenha respondido. As dúvidas dessa casa temem as respostas. Ela já não lembra como era sua voz.

Volta para o quarto sem tocar o suco. Ele vê o relógio. Desnecessário. Ele sente que o marido dela está chegando. Nunca foram próximos. Se pudesse sentir alguma coisa por ele seria ódio. Suas atitudes são invasivas, não o respeita. Aquele espaço, aquele quarto é dele. Ela o entende, defende. - Já cansei dessa história! Esqueça aquele moleque! Você precisa fazer ele seguir. Aliás, você precisa seguir, meu amor! Ele prende você a esta casa. Onde estão seus sonhos? Você sempre quis conhecer o país. Ele não precisa mais de você. - Eu sei, eu sei, mas se sairmos daqui, ninguém vai cuidar dele. Ele precisa, sim, de mim! Eu preciso ficar aqui pra cuidar do meu filho! Você não sente isso por que não é o pai dele.

Lágrimas. Sempre são elas que terminam essas discussões. Seu marido a ama demais para discutir vendo-a chorar. São grandes demais os traumas dessa casa. Ele entende que não tem forças para lidar com isso. Um abraço. Lágrimas. Desculpas.

Do quarto não se identificam palavras. O tom de voz, porém, basta para que se saiba o assunto da discussão. Uma vez mais. Outro elemento de sua rotina. Sente culpa por tudo isso e, principalmente, raiva. Raiva de si mesmo, por não ter forças para lutar. Para se fazer ouvido. Para sair daquela casa de uma vez por todas. Deixar que sua mãe siga seus sonhos de juventude, agora, já idosa. Ela sofreria demais. É o que precisa ser feito, porém ele sabe que isso não vai acontecer. Ele prometeu nunca mais a deixar sofrer. Já não foi o suficiente causar a morte do pai naquele acidente? Ele não precisava dirigir, era inexperiente. Deveria ter deixado seu pai ao volante. Não foi o suficiente enterrar o próprio pai? Roubar a vida do amor de sua própria mãe!

Sente-se um prisioneiro da rotina. O tempo arrasta-se para a eternidade. Sua existência permanece vazia como as páginas dos livros que lê. A rotina é forte demais para alguém como ele. A tristeza, as dores, os medos. Ele não sairá do seu quarto.

Hoje é seu aniversário. Ele não comemora. A mãe vai ao cemitério. No caminho, compra duas rosas. Seu marido abraça as lágrimas de uma vida normal.

Harrison Bourguignon
Enviado por Harrison Bourguignon em 08/02/2012
Código do texto: T3487023
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