O sonho do meu amigo Ícaro...
(*) Homônimo do personagem da mitologia grega que fugiu do labirinto de Creta servindo-se de asas pregadas com cera, as quais se derreteram ao aproximar-se do sol, donde lhe resultou cair no mar.
Dizem que mais vale um pássaro na mão que dois a voar. Pois bem, para o meu amigo Ícaro, mais valem centenas, milhares, milhões de pássaros a voar, numa esquadrilha assimétrica, errante e desafinada, assim como fazem as andorinhas do hemisfério norte, que, todos os anos, em desabalada revoada, fogem do rígido inverno glacial à procura de refúgio no aconchegante calor dos trópicos...
Ou, então, como aqueles imensos pássaros prateados, que, com suas bandeiras, prefixos e turbinas, não se cansam de cruzar o céu das cidades e dos campos; das florestas, das geleiras, dos rios e dos mares...
Todos os dias, à mesma hora, o meu amigo Ícaro, pela janela daquele sobrado alto, via, na casa do vizinho, um pássaro um tanto amarelado, um tanto esverdeado.
O meu amigo Ícaro não sabia se era do reino, do campo, ou da terra. Nem mesmo se canário ele era.
Hoje, pela manhã, quando o meu amigo Ícaro afastou a cortina, lá estava ele. Saltava de um lado para o outro, agarrava-se às grades, revirava os olhos na vã tentativa de encontrar uma saída.
Não dispunha de espaço para acrobacias ousadas, sequer podia vislumbrar a elementar perspectiva de um voo a céu aberto... mesmo assim, ele não parava de saltar e de cantar os mais belos cânticos que o meu amigo Ícaro, nos seus vinte e poucos anos, jamais ouvira...
Se o meu amigo Ícaro pudesse decodificar aquela melodia, diria que o pássaro suplicava para que o deixassem bater asas e partir, e, tal qual Fernão Capelo Gaivota(1), correr os inevitáveis riscos que a liberdade impõe...
Todavia, por ele, nada ao meu amigo Ícaro era dado fazer, a não ser, em introspectivo silêncio, agradecer-lhe por, mesmo sem um céu para voar, mostrar-lhe o inestimável valor de algo tão simples e corriqueiro como abrir a porta e sair;
poder sentir o cheiro das manhãs, o aconchego de um sol de outono, o frescor da brisa que sopra da Serra do Mar, e, não raro, até aquela bem vinda fria e cortante garoa paulistana...
Nunca o meu amigo Ícaro dera tanto valor à rotina de mais um dia na vida, a cada bom dia que dava, a cada bom dia que recebia, aos passos que, pelas estreitas ruas da cidade percorria...
Graças àquele pássaro cantador, o meu amigo Ícaro pôde, sem querer, perceber que a felicidade morava do lado de fora do geométrico perímetro das gaiolas;
que ela estava no ar que respirava, e nos caminhos que, pela vida afora, ao livre arbítrio percorria...
(...) Pode ser que o vizinho do meu amigo Ícaro pense que o pássaro cante por não ter mais o que fazer, ou, simplesmente, para lhe agradecer a água fresca no bebedouro, as saborosas e pontuais refeições de alpiste, e, sobretudo, pela “generosa hospitalidade” sob o telhado da lavanderia...
Talvez não valha a pena o meu amigo Ícaro preocupar-se tanto com a liberdade que aquele pássaro sequer saiba existir...
Afinal, dizem que “aquilo que os olhos não veem, o coração não sente...”
(...) Vai ver, ali, recluso, ele até seja feliz, muito mais feliz do que o meu amigo Ícaro possa imaginar.
Na verdade, o meu amigo Ícaro só queria vê-lo bater asas e voar, ter o sagrado direito de ser livre, assim como os aviões, as pipas e os helicópteros...
FIM
Conto de Zizifraga
Reeditado em dezembro de 2011.
Nota:
(1) Referência ao livro, “Johnatan Livingston Seagull”, de Richard Bach (escritor americano, 1936 - ), cuja narrativa conta a saga de uma gaivota; em 1973 transformada em um filme que passaria para a história do cinema mundial.