O TERCEIRO MUNDO
                                       Juliana Valis



Larissa e Júlia eram duas dos cento e cinqüenta candidatos a uma vaga de repórter em uma das maiores empresas jornalísticas de São Paulo. Sentadas na sala central da referida empresa, as duas colegas aguardavam, ansiosamente, o momento de sua entrevista com o Editor-chefe do Jornal Córtex Universus. Ao observarem a face desanimada dos candidatos já entrevistados, que saíam a cada cinco minutos da sala ao fim do corredor, Larissa e Júlia naufragavam em um misto de esperança e incerteza.

Apesar de serem amigas de infância, as duas tinham a plena convicção de que ali, naquele exato momento de suas vidas, eram duas irremediáveis rivais, disputando com unhas e dentes um ínfimo espaço no mercado de trabalho. Por esse motivo, estavam nitidamente tensas e prefeririam manter uma certa distância em tal ocasião de concorrência cega. Todavia, por avareza ou ironia do destino, Larissa e Júlia receberam os dois últimos números de inscrição para a entrevista que, até aquele instante, ainda não havia aprovado qualquer dos cento e quarenta e oito candidatos à vaga de repórter. Assim, elas haviam ficado muito próximas, não só em virtude de seus números subseqüentes de inscrição, mas, sobretudo, em decorrência do medo de não conquistarem o emprego.

Quando Larissa ouviu a secretária chamar o candidato de número cento e quarenta e nove para a entrevista, suas mãos ficaram trêmulas e suas pernas bambearam até que pudessem levá-la à sala do Editor-chefe.

- Boa tarde. – Disse serenamente o editor ao ver Larissa entrando em sua sala.- Sente-se, por favor, e responda às perguntas que eu lhe fizer, de modo calmo e reflexivo, sem necessidade de nervosismo.



Larissa obedeceu às instruções e se sentou em frente ao Editor-chefe, que iniciou o questionário com uma pergunta um tanto quanto excêntrica:

- A senhorita, por acaso, conhece o universo ?

- Não, senhor...

- Alex. Pode me chamar de Alex, sem o senhor. E eu, como posso chamá-la?

- Larissa.

- Pois bem, Larissa, eu andei viajando por todos os planetas de nosso sistema solar e só me resta conhecer o terceiro mundo. Gostaria, então, que você me descrevesse as principais características desse mundo, incluindo os hábitos das pessoas, o convívio delas com os recursos ambientais e as ações que têm sido concretizadas a fim de preservá-los.

- Bom... O terceiro mundo é basicamente composto pelos países sub-desenvolvidos...

- Não, Larissa, desculpe-me, eu não fui muito claro. O terceiro mundo é o mundo em si. O terceiro mundo é o planeta Terra. O seu planetinha, entende?

- O nosso planeta, Alex.

- O seu planeta, Larissa. – Corrigiu o editor com voz enfática. – Eu não sou daqui. Sou um jornalista interplanetário, cruzando o universo para completar meus relatórios sobre as condições de vida em todos os mundos do universo. Adquiri a forma humana apenas para facilitar o meu trabalho. Falo mais de sessenta tipos diferentes de línguas e, portanto, não me foi nada difícil aprender o Português, o Russo, o Mandarim, além de outros idiomas terráqueos. Cheguei a este planeta há pouco menos de dois dias e estou com certas dificuldades em concluir meu relatório sobre as condições de vida no terceiro mundo, o seu mundo. Por isso, necessito de um repórter ágil e inteligente que me auxilie nesse serviço. Se você souber responder com precisão às seguintes perguntas, você será imediatamente contratada. Posso começar, então ?

Larissa, completamente atônita, indagou-se mentalmente de que hospício havia fugido aquele estranho Editor-chefe . Sem saber como agir, porém, ela respondeu, confusa:

- Antes de fazer a primeira pergunta, Alex, permita-me tirar uma dúvida...

- Sim.

- Se você já passou por quase todos os planetas do sistema solar, por que em seus relatórios a Terra seria o terceiro mundo. Não deveria ser o último ?

- Simples, Larissa. O planeta Terra ocupa a terceira órbita do sistema solar. Agora, quantos habitantes vivem nesse seu planeta ?

- Mais de seis bilhões, distribuídos desigualmente em cinco continentes.

- E quais são as condições de vida desses seis bilhões ?

- Pode-se dizer que a minoria vive muito bem e a maioria vive muito mal.

- Especifique mais sua resposta, por favor, Larissa.

- De um modo geral, a riqueza e o bem-estar são altamente concentrados na Terra. Enquanto poucos indivíduos desfrutam de banquetes em suas mansões luxuosas, muitos outros nem sequer possuem comida ou uma simples casa. Enquanto alguns países detêm grande poder econômico por serem exploradores, outros submergem em ruínas sociais por serem endividados, no presente, e por terem sido brutalmente explorados, no passado.

- Em um mundo tão assimétrico, o que as pessoas costumam valorizar ?

- A maioria dos terráqueos, com poucas e louváveis exceções, valorizam bens materiais, aparência física, poder, fama e status social. Trata-se de um mundo infelizmente degenerado, no qual as pessoas nem sempre valem o que elas são, mas, muitas vezes, o que elas têm.

- E qual é o tipo de relação dos terráqueos com seus recursos naturais ?

- A natureza na Terra tem sido constantemente agredida. Florestas são desmatadas em nome de um certo progresso, animas têm sido extintos, mares vêm sendo poluídos e ecossistemas têm sido desequilibrados. Daqui a alguns anos, é bem provável que os recursos hídricos já estejam bastante escassos no mundo.

- Neste seu mundo tão assimétrico e auto-destrutivo, ocorreram quantos episódios de violência ou de guerras ?

- É praticamente impossível dizer exatamente quantos fatos violentos ou bélicos vêm ocorrendo ao redor do globo. O que posso lhe responder é que são muitos, tão numerosos quanto catastróficos. Só a segunda guerra mundial, por exemplo, dizimou milhões de seres humanos, em virtude de interesses absolutamente espúrios.

- Muito bem, Larissa. Pelos dados que você me forneceu sobre seu mundo, posso concluir meu relatório asseverando que o planeta Terra é um dos mais atrasados do universo. Só para você ter uma rápida idéia, os seres de Júpiter viveram harmoniosamente durante séculos, sem que qualquer deles morresse de inanição, mesmo porque eles se alimentam mediante um processo semelhante à fotossíntese terrestre.

- Mas Júpiter está tão distante do Sol !

- Para você ver como a tecnologia jupteriana de captação e utilização de raios ultra-violeta é incrivelmente mais avançada do que vocês, terráqueos, possam imaginar.

- Está concluído seu relatório sobre o terceiro mundo, então, Alex ?

- Quase, Larissa. Preciso que você faça uma observação profunda sobre a Terra para inseri-la em meu relatório, por meio de uma frase simples, mas não simplória. - Bem... Eis a observação para seu relatório: enquanto permanecer uma divisão estúpida entre três mundos, a Terra nada mais será do que um pequeno planeta, perdido no caos infinito do universo e no caos de suas grandes desigualdades, cada vez mais cruéis e cada vez menos aceitáveis.

- Ótimo, Larissa, com essa observação você acaba de ser contratada. Partiremos agora mesmo para a sede do jornal, na Lua.

- O quê ? – Perguntou a moça, atônita.

- Sim, você não quer ser uma repórter interplanetária ?

- Lamento, Alex, mas não posso exercer este emprego. Nenhum terráqueo viveria bem na Lua por muito tempo... – Respondeu Larissa, saindo aterrorizada daquela sala de entrevistas, enquanto Júlia, a última candidata ao cargo de repórter, adentrava o recinto dominado pelo excêntrico Editor-chefe.



Por solidariedade, Larissa resolvera aguardar o término da entrevista de sua amiga. Após cinco minutos, Júlia abria a porta da sala com um sorriso estampado na face. Absolutamente curiosa e com tom irônico, Larissa perguntou-lhe:

- Você aceitou ir trabalhar na Lua ?

- Sim, por que eu não aceitaria ?

- Pelo mesmo motivo que os outros cento e quarenta e nove candidatos à vaga de repórter, Larissa. – Respondeu o Editor-chefe, que andava atrás das moças e resolvera interferir na conversa. – Nenhum deles sabia que Lua é a designação dada à sede desta empresa jornalística, que fica na periferia de São Paulo.

- Ele lhe deu essa informação ? – Indagou Larissa, indignada, à Júlia.

- Não, eu mesma deduzi.

- Como ?

- Pensando em quantos planetas existiriam dentro da própria Terra, dentro do Brasil ou dentro desta grande metrópole. Ora, se o sol é o centro do universo, e a Terra gira em torno do Sol, então o nosso planeta, que é o terceiro mundo, está na periferia do universo. Assim, se a Lua gira em torno do nosso mundo, então ela também está na periferia do universo, na periferia do Brasil ou na periferia de São Paulo . Vá agora mesmo, olhe para a escuridão do céu e veja se a Lua não está, minguante, nova, crescente ou cheia, no grande subúrbio desta capital paulista !


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