JIHAD
                                        por Juliana S. Valis



"
As pessoas dividem-se entre aquelas que poupam como se vivessem para sempre e aquelas que gastam como se fossem morrer amanhã."
                                            Aristóteles


        Seria possível escapar incólume da insensatez mundana que almeja santificar a insípida guerra de todos contra todos ? Seria factível ?, indagou Renata ao se olhar no espelho rachado e ver seu semblante esquálido de mortal que acorda às cinco horas da manhã, sem a mínima vontade de um dia ter nascido. Cinco horas da manhã ! O despertador soa estridente e neurótico, fazendo apologia ao cumprimento dos deveres diários. Enquanto isso, o sol, as nuvens, as árvores, as flores, os mares, as praias e as gaivotas do mundo zombam, com inefável pesar, dos bilhões de vultos humanos que vagam nauseabundos pelo planeta Terra.

           Intrigantemente, os passarinhos que ainda não foram extintos observam, de longe, a transformação fantasmagórica dos seres humanos em seres máquinas, há séculos entretidos com as varias modalidades de jihad extrema, seja a manchada com sangue, a marcada com lágrimas ou a impregnada de suor. Bem ou mal, os seres (humanos e/ou máquinas) conquistaram o espaço, tecnologicamente delimitado por regras excelsas de uma teoria da relatividade sui generis, mas se deixaram escravizar pelo tempo. O ponteiro das horas céleres que tolhem os desejos e os sonhos mais lídimos. A ampulheta execrável que não espera o ódio se converter em amor. Ah, Cronos, se tu não fosses o deus dos tempos bélicos, talvez os seres humanos pudessem transcender a matéria bruta que os prende indelevelmente à realidade nua e crua das desilusões mundanas... Talvez o tempo não fosse mais dinheiro. Talvez o tempo não fosse, nunca mais, prisão. Seis horas da manhã !

            Marco importantíssimo da jihad genérica de Renata. Os passarinhos que ainda não foram extintos vêem a moça saindo, invariavelmente com pressa, de sua espelunca localizada no décimo quinto andar de um prédio no Bairro da Angústia. Seus saltos finos não acompanham a velocidade de suas pernas em direção à estação de qualquer metrô que a leve, em menos de cento e vinte e um mil aborrecimentos, à sede de qualquer empresa chamada Emprego S.A. Respeitosamente, Renata chega quase-viva ao hall de entrada da empresa aludida e, fingindo não estar de TPM, esboça o mais incauto sorriso amarelo em direção à replica grotesca do quadro “Guernica”, de Picasso, estampado na parede em torno da qual estão trabalhando os seus colegas quase-mortos, às sete e quinze da manhã:

- Bom dia, pessoal. – Ela diz tranqüilamente. – Desculpem pelo atraso...

- Você já conta com mais de 362 atrasos apenas neste ano, Renata. – Imiscui-se o chefe, enfaticamente, com um humor um tanto quanto sanguinário, em meio ao coral das vozes desafinadas dos operadores de telemarketing.

- Eu posso explicar...

- Não, não pode. – Responde o chefe com a sua voz possante de barítono.

- Posso sim. – Replica a moça com seu timbre de soprano em meio à orquestra das mãos que digitam nos micro-computadores.

- Não quero saber. E você está demitida.

- O quê ? – Exclama a moça, como se estivesse cantando ópera.

- De-mi-ti-da ! – Replica, enfim, o chefe, em um crescendo na escala de sol-maior, como se passasse do mi-bemol ao fá-sustenido.



        Oito horas da manhã. Os sons emitidos pelas pregas vocálicas do chefe entram em cataclísmica dissonância com a freqüência dos sentimentos de Renata. Ecos. Reverberações. Rajadas de metralhadoras capitalistas. Jihad sinfônica. Apoteose de instrumentos de cordas cruéis e sopro traumático. De-mi-ti-da, cantam no fundo as mocinhas novatas no Emprego S.A, em meio aos violinos que o desespero toca de forma tão magnífica. De-sem-pre-ga-da, reforçam em seguida os Office-boys da empresa como tenores em serenata contenciosa.

        De súbito, a exímia orquestra do Mundo-Real afina seus instrumentos e executa a nona sinfonia de Beethoven para compor a trilha sonora da vida teoricamente humana. E Renata dança, chora e engasga, embalada pela melodia das flautas-ácidas que pareciam ser tão doces nos musicais de Hollywood... Nove horas da manhã. Renata tenta se erguer, continuando sob a observação clínica dos passarinhos que ainda não foram extintos. Enquanto os humanos se digladiam por dinheiro ou poder ou emprego, os pássaros festejam a liberdade da vida em profusão.

        Aliás, os pássaros são uns dos poucos seres genuinamente felizes, porque de fato podem voar além dos altos e baixos da vida humana e muito aquém dos tsunamis existenciais que inundam, por exemplo, a pobre alma de Renata. Ah, Renata, tu só quiseste tocar piano com mãos de fada, e sambar sob o ritmo da felicidade, e correr pelos campos do amor transcendente e ridicularizar, sorrindo, a inconsistência das lágrimas nem sempre vãs... Mas, às dez horas da manhã de um dia teoricamente útil, tu, que foste condenada à existência por meio da união de um certo óvulo incauto e de um certo espermatozóide afoito, simplesmente não sabes para onde ir, nem o que fazer, nem como respirar o ar já tão poluído de uma civilização antropofágica.

           Ah, Renata, se tu fosses apenas um desses passarinhos que te observam e que ainda não foram extintos, tu baterias as asas, às onze horas da manhã, e voarias como águia intrépida. Ao meio dia, tu poderias ser pomba branca que voa alto, anunciando a paz aos cinco continentes da Terra, sem medo dos projéteis, dos mísseis e das bombas atômicas. Mas tu és irremediavelmente humana ! Tua carne frágil e teus ossos de carbono e cálcio não suportam nem mesmo o ritmo estonteante dos ponteiros que fuzilam tua mente, em busca de um novo emprego.

          Uma hora da tarde. Renata perambula sem rumo pelas ruas do Bairro do Desespero. Encara os outdoors publicitários nas Vielas do Sonho e decide tentar a sorte sendo modelo internacional. Três horas. Renata entra no ônibus que passa pela Favela das Decepções. De súbito, ela se lembra dos seus quatro meses de aluguéis atrasados, enquanto olha atônita para seu extrato bancário com saldo negativo no Banco Massacre Financeiro S.A, no mesmo momento em que um moleque de dez anos furta sua carteira entre o vai-e-vem do ônibus. Cinco horas. Renata lembra que nunca poderá fazer fortuna sendo modelo internacional porque não é tão anoréxica quanto a garota que está sentada à sua frente no ônibus em questão. Posteriormente, Renata desce do ônibus na parada da Avenida Apostas, onde emprega seu último real jogando na mega-sena acumulada.



          Sete horas da noite. A moça se perde em meio aos becos sem saída da Rua da Tristeza, quando sente tontura, palpitações e sopros no coração. Em seqüência, a moça delira em fazer plástica para dar o golpe do baú em qualquer jogador de futebol que ganhe milhões apenas correndo atrás de bola. Renata, então, desmaia, sem poder controlar as sístoles e diástoles de seu coração sensivelmente martirizado. A moça é, enfim, socorrida por um moto-boy que a leva até o hospital público mais próximo, encontrando à sua frente cerca de quinhentas e sessenta e quatro pessoas que estavam na fila, prestes a falecer, sem qualquer condescendência do Estado de Direito ou do Estado Paralelo.



         À zero hora, enfim, Renata transcende sua existência efêmera, libertando-se da obrigação de respirar com pulmões humanos. Renata renasceu como pássaro que ainda não foi extinto. Um pássaro que se entretém observando bilhões de Renatos e Renatas, pelo mundo afora, lutando pela sobrevivência a despeito da jihad de cada dia, a pseudo-guerra santa humana, o circular combate entre o tempo e o mundo, a eterna dicotomia entre os anseios metafísicos da alma e o reclames materiais do corpo. Renata, afinal, sublimou-se e superou a jihad como pássaro. Renata, a renascida em meio ao caos de tudo, como sinal de colapso do vácuo que engendra o nada. Renata, simplesmente uma renascida na metamorfose maior de uma águia intrépida.

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"Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz."
Platão


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