A LONGA TORTURA DA "ÉTICA" BRASILEIRA

A LONGA TORTURA DA "ÉTICA" BRASILEIRA

Deolindo é faxineiro concursado no palácio do governo do Distrito Federal há mais de vinte anos. Um exemplo de dedicação, honestidade, empenho e companheirismo. Sempre com um sorriso simpático estampado, a todos cumprimenta com a mesma sem-cerimônia e por todos é tratado carinhosamente como Seu Deo.

Seu Deo sempre trazia um galhinho de arruda na orelha, acreditava piamente que isso sempre lhe dava a sorte de manter uma vida honesta: marido há vinte e cinco anos e pai de dois filhos e duas filhas, a menor com dez anos neste momento, dezembro de 2009.

Esse fato de usar sempre a arruda fez com que o novo governador do Distrito, o Sr. José Roberto Arruda, já na sua posse, encarasse como uma homenagem a si e adotasse Deolindo como o faxineiro exclusivo do gabinete de governo. Seu Deo também encarou isso como um reconhecimento pela sua postura, pois nada entendia de política. E como a coisa era boa pra todos, aceitou com prazer.

Isso foi no início de 2007 e, numa bela manhã brasiliense, com o governador fora por algum motivo político, Seu Deo teve a oportunidade de, finalmente, poder fazer uma limpeza mais acurada na mesa do governador. Limpa daqui, limpa dali, limpa em cima, limpa embaixo, limpa gavetas, atrás das gavetas, do lado das gavetas, a tampa traseira da mesa, limpa, limpa e... surpresa... a tampa traseira da mesa se move.

Seu Deo imediatamente tenta ajustá-la no lugar e, antes de perceber que essa tampa corria por trás das gavetas para abrir e fechar, teve mais duas surpresas: havia outra tampa traseira, essa bem fixa, a da mesa mesmo, e entre as duas, a fixa e a falsa, havia muitos, muitos pacotes de notas de R$100,00 nas aparas especialmente feitas para isso nessa tampa móvel. Seu Deo saiu debaixo da mesa tão alvoroçado que bateu a cabeça no tampo. Recuperada a calma, voltou para lá e resolveu averiguar.

Havia ali, devidamente seguros e bem ajustados nas respectivas aparas, vinte pacotinhos e cada um deles tinha cem notas de cem reais cada. Ou seja, nada mais, nada menos que duzentos mil reais enfiados entre as duas tampas traseiras da mesa. Quem os teria colocado ali?! Será que o governador sabia da existência dessa fortuna na sua mesa?! Isso compraria, no mínimo, até quatro casinhas para Seu Deo e família! Ele nunca tinha visto tanto dinheiro assim na vida!

Tomou sábia decisão: resolveu ajeitar tudo como estava e deixar o tempo passar. Sempre curioso, não teve outra oportunidade de olhar se o dinheiro continuava lá. Só depois de três a quatro meses é que surgiu nova chance e lá foi Seu Deo seco pra ver se a fortuna tinha passado para outras plagas. Não, não, lá estava do jeitinho que ele havia recomposto.

No palácio, todos continuavam a tratá-lo com a mesma alegria, a mesma felicidade, recebiam dele o mesmo sorriso, mas Seu Deo era outro, algo o incomodava, algo mudara dentro de si. Por que ninguém pegava aquele dinheiro? De quem era aquela dinheirama? Ele precisando tanto de dinheiro e aquilo abandonado ali, sem dono, esquecido. Ele pegou um dos pacotinhos e brincou com ele. Antes de colocá-lo no lugar novamente, beijou-o, como que pedindo sorte para si mesmo.

O tempo foi passando, Seu Deo sem poder examinar de novo se a fortuna continuava ali, intacta. Ansioso, ficava esperando que o governador recebesse algum convite para viajar, a fim de que ele pudesse limpar de novo o gabinete como devia. Mas o governador não saía e quando saía ia perto, voltava logo. Deolindo não podia correr nenhum risco.

Mais oito meses se passaram e o governador viajou para São Paulo, a negócios políticos. Seu Deo voou pra debaixo da mesa, abriu o tampo falso e... os vinte pacotinhos iam caindo no seu colo, todos lá, intactos, pedindo despacho. Seu Deo abraçou os vinte, apertou-os contra o peito, sorriu para eles, fantasiou sobre eles, sonhou, voou... mas... é melhor recolocar no lugar. Fez isso, arrumou direitinho, não deixou nenhuma pista. E voltou para sua rotina diária, sempre incomodado com aquela poupança alheia que caíra em suas mãos, sem que ele pudesse usá-la.

O tempo passando, Seu Deo esteve com os vinte pacotinhos mais umas quatro vezes, tentado, muito tentado, mas a consciência alfinetava que o dinheiro não era dele, que ele não devia mexer e ele sempre cedendo à sua consciência. Sempre ajeitava o dinheiro direitinho, e ninguém nunca mexeu nele, parece que só ele sabia da existência daquela verdadeira riqueza. Por que o dono não pegava, não usava?!

Mais tempo, mais espera, mais contato com a fortuna ‘alheia’ e abandonada, e nada. Pensou em conversar com a esposa, mas ficou com medo de que ela ralhasse e mandasse tomar tino. Melhor não! Meu Deus, com quem falar, mas... falar seria dar bandeira, outro ficaria sabendo. Não, melhor não mesmo, devia continuar seu namoro e aguardar a hora certa. Uma hora, como dizia o mestre, se tivesse de ser dele, às suas mãos haveria de ir ter.

Tempo, tempo, 2009 correndo, já quase três anos da sua ‘descoberta’ ou ‘achamento’ quando, não mais que de repente, a bomba explodiu. Mensalinho do DEM! O que era aquilo!? Filmes e diálogos pra lá, pra cá, corrupção, gravações, dinheirama escorrendo pra tudo quanto era deputado distrital, secretário, nas meias, na cueca, nos bolsos dos paletós, em caixas, uma chusma de cafajestes desfrutando do dinheiro alheio. Aí Seu Deo percebeu de quem era aquele dinheiro e resolveu tirar proveito. Ladrão que rouba ladrão...

No dia seguinte, deu um jeito de entrar no gabinete. Chegou bem mais cedo que o normal e foi lá limpar. Fingia que limpava, disfarçadamente se meteu sob a mesa, tirou o tampo e colocou os vinte pacotinhos num saco que levara. Encostou num canto e continuou a fingir sua limpeza.

Aí resolveu sair, ‘acho que agora dá’, e... logo que abriu a porta... deu de cara com dois brutamontes elegantemente vestidos:

- O que o senhor leva aí nesse saco? - um deles perguntou.

Seu Deo, pego de surpresa, não sabia o que responder. Ficou encolhido e balbuciou alguma coisa quase ininteligível:

- Nada não, nada não, é um saco com as sujeiras do governador, só isso, vou jogar tudo no lixo - tentou se defender.

- Abra!

Seu Deo não teve saída. Abriu e foi pego em flagrante como um dos principais participantes do Mensalinho liberal do DEM. O tempo está passando, já seis meses após a eclosão do escândalo, e ele continua preso, aguardando o julgamento final. Aliás, foi o único preso, acusado de que, já no governo anterior, do Sr. Roriz, ele, Seu Deo, armara aquele esquema e, fingindo ser humilde e sincero servidor público, amealhou fortuna, inclusive aqueles duzentos mil reais, que lá estavam ‘esquecidos’, mas que na realidade estavam guardados no lugar mais seguro do palácio!

Os vinte e tantos secretários, os oito deputados distritais, o governador e o vice-governador, os empresários que participaram comprovadamente do esquema de mais aquele mensalão liberal estão todos livres e nada foi provado contra eles até o momento, a CPI não avança, apesar de todos os vídeos, os autorizados pela Justiça e os não autorizados.

Num final de semana, essa turma toda se reuniu numa enorme pizzaria de Brasília, acompanhados de representantes da Justiça, da CPI, da Polícia Federal, e saborearam o prato predileto do Centro brasileiro, e a conversa, irônica e sorrateira, versava sobre as absurdas atitudes e artimanhas desse ‘inocente’ Seu Deo.

O Sr. Arruda aguarda o tempo passar para, mais uma vez, inscrever-se em outro partido e disputar outra eleição, contando, também mais uma vez, com a memória curta do eleitor brasileiro.

O tempo passando, um ano já do flagrante ao Seu Deo. Ele preso, e as provas, produzidas e plantadas, cada vez mais aumentando e confirmando que ele era o corrupto dos corruptos, que tinha conseguido movimentar coisa de dois bilhões de reais de 2006 a 2009, e que tinha forjado o envolvimento daqueles pobres secretários, deputados, vice-governador e até os dois governadores da época, Sr. Roriz e Sr. Arruda.

Por tudo isso, Seu Deo aguarda julgamento e, pela quantidade de provas contra ele, provavelmente pegará pena máxima. E a pizza continua sendo servida não só em Brasília, como também em todas as grandes cidades e capitais brasileiras.

Prof. Leo Ricino

Dezembro de 2009

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 29/02/2012
Reeditado em 09/06/2012
Código do texto: T3527290