UM BOLO DE CHOCOLATE
O menino maltrapilho bate a porta da casa da Graça.
- Me dá uma coisa pra comer?
Graça, que tinha acabado de fazer um bolo de chocolate, cortou uma fatia bem grossa e deu ao garoto que o engoliu em dois bocados.
- Está muito gostoso!
- Quer mais um pedaço?
- Quero
Cortou outro pedaço maior ainda e deu ao menino que prontamente o devorou.
Lembrou-se com uma ponta de remorso quantas vezes fazia um bolo, comia um pedacinho e acabava jogando o resto no lixo.
Ela comia pouco. O filho não gostava de bolo e a nora estava sempre de regime.
Embrulhou o resto do bolo cuidadosamente, em um papel alumínio, colocou em uma caixinha e deu a ele dizendo:
- Leve para você comer depois.
- Deus lhe pague!
- Olhe, quando quiser fazer uma boquinha passe por aqui que eu sempre tenho alguma coisa gostosa para você comer.
Aquele menino mexeu com a Graça. Tão carente, tão desprotegido, tão necessitado de amor!
Dias depois ele apareceu de novo.
Enquanto ele comia, Graça resolveu fazer-lhe algumas perguntas.
- Como é o seu nome?
- Lupercínio Rodrigues Farias de Almeida Brasil
- Nossa que nome bonito! Grande, imponente, parece nome de rei, mas eu vou chamá-lo de Lupy para facilitar, posso?
Com a boca cheia e os olhos brilhando, o menino sacudiu os ombros sem responder.
Lupy tornou-se visita freqüente na casa da Graça.
Professora e psicóloga experiente ela procurava sutilmente doutrinar o menino.
Sabia que não adiantava longos sermões, pois ele tivera desde o berço uma educação muito diferente da ideal e era preciso conquista-lhe a confiança, agradar muito para que pudesse induzi-lo a um bom caminho.
Isto é o que Graça se propunha à revelia do filho que a criticava.
- Você fica dando entrada pra esse moleque, de repente ele pode nos roubar ou trazer bandidos para nos assaltar.
Mas a Graça estava muito interessada no seu pupilo e não dava ouvidos as ponderações do filho.
- Gostou do bolo, Lupy? É de laranja.
- Gostei, mas gosto mais do de chocolate.
- Que mimado que ele está, brincou, já está até escolhendo os sabores! De agora em diante todos os bolos serão de chocolate. Está bem?
- Que bom!
Às vezes Lupy demorava dias e até semanas para aparecer e Graça ficava preocupada: Por onde andaria? Que estaria fazendo?
Quando voltava ela perguntava o que fizera todo aquele tempo e ele respondia evasivo:
- Tive por ai fazendo uns trampo
- Trampo? Que é isso?
Ele sacudia os ombros:
- Umas coisas
Graça imaginava o que seriam essas “coisas”, preocupava-se, mas não sabia o que podia fazer para ajudar.
E o filho protestava:
- Você ainda vai se arrepender de dar confiança pra esse pivete.
- Não fale assim do Lupy. Ele é apenas uma criança carente. Se eu fosse mais moça ia adotá-lo
- E eu a internaria num hospício! Retrucava, brincando, o filho.
Mas Graça dizia isso só para provocá-lo. Nunca adotaria o Lupy. Ele era como um animalzinho silvestre, livre e solto que não se adaptaria a uma vida pré-moldada.
Só queria ajudá-lo a encontrar um bom caminho longe dos vícios e dos crimes, mas não sabia como fazer isso e percebia que não estava conseguindo o seu intento.
Até que um dia ele desapareceu de vez.
Graça não conseguia esquecê-lo.
Durante anos, todos os dias, lia a coluna policial com o coração apertado, esperando a qualquer hora defrontar-se com o seu nome:
Lupercínio Rodrigues Farias de Almeida Brasil!
Certamente não teria nenhum homônimo, mas, quem garantia que fosse esse mesmo o seu nome? Parecia tão estranho! Não se parecia com ele!
Mas um dia encontrou o que tanto temia.
Lá estava o nome longo e imponente. Lupy participara de um assalto e fora preso.
Lupercínio Rodrigues Farias de Almeida Brasil nasceu e cresceu em uma favela, na mais completa miséria.
O pai alcoólatra, a mãe sempre aborrecida, brigando com o marido com as crianças e com os vizinhos, ambiente doméstico insuportável, falta de tudo, de comida, de amor de bom exemplo...
Desde muito cedo começou a vagar pelas ruas, esmolando e roubando.
Não freqüentou direito a escola, mal aprendeu a ler e escrever, não teve uma profissão definida nem condições de arranjar um trabalho.
O caminho perigoso da marginalidade pareceu-lhe o mais fácil e promissor, a sua única chance de sobrevivência.
E agora fora preso e condenado a uma longa pena.
Na sua família já tinha havido muitos casos de prisão. Cadeia não era nada fora do comum para ele, mas, só agora sentia na própria pele o que era uma penitenciária e a perspectiva de passar longos anos ali o desesperava.
Sem nada para fazer, rodeado de maus elementos com quem não sentia afinidade alguma, passava os dias em silêncio, pensando, pensando...
Vinham-lhe a mente, imagens de sua infância desprotegida, o contato com os vícios, a promiscuidade, a devassidão,.suas andanças pelas ruas, desprezado, agredido, humilhado...
E, como um raio de sol rompendo as trevas da desesperança, a casa de Dona Graça.
O terraço de fundo, cheio de vasos de samambaia com a mesinha `diante da qual ele sentava-se para comer bolo de chocolate. Que delícia! Só de lembrar enchia-lhe, de água, a boca.
Como estaria ela, agora? Será que ainda fazia bolos para dar a meninos vadios? Será que um dia ainda a veria?
Nunca recebia visitas. O pai estava internado por alcoolismo, a mãe não ligava pra ele, a namorada deixara-o por outro.
Nunca tivera amigos. Só comparsas, companheiros de malandragem.
O futuro lhe parecia inexoravelmente sombrio e triste. E ele ainda não tinha nem vinte anos!
Mas, naquela tarde teve uma surpresa:
- Lupercínio! Tem uma visita pra você
Sim! Era ela mesma! Dona Graça que vinha entrando com passos inseguros revelando todo o tumulto que lhe ia no coração.
Nunca imaginara que um dia adentraria um lugar daqueles! Mas estava ali e sorria para Lupy que se aproximava emocionado e confuso:
- Dona Graça! Juro que sou inocente!
- Oh! Lupy! Eu não estou aqui para julgá-lo, muito menos para condená-lo.Só vim trazer um bolo de chocolate pra você.