As feiticeiras aladas

Foi num dia qualquer desses, digo isso pois não sei qual é o de hoje. Taiuô estava entediado de ficar confinado dentro de casa. Então resolveu sair para o quintal. Quem sabe, se a rua estivesse interessante, abraçá-la-ia pulando o muro de casa... sim, pois abrir e fechar o portão demandam muito tempo. Taiwo era cheio de energia para essas coisas aventureiras. Eu digo interessante, pois, às vezes, poderia estar fazendo um sol escaldante, a pino, meu Deus, que calor dos infernos. E lá onde morava fazia um sol dos diabos! O que ele iria fazer na rua com essa temperatura? Ver o lixeiro passar realizando seu trabalho, sofrendo naquele sol de maçarico e pedindo água pelo amor de Deus? Lembrava até o desenho do Pica-pau, quando ele e o Zeca Urubu estavam no deserto e viam miragens.

Uma possibilidade refrescante seria ir para o quintal do Francisquinho. Lá sim era muito legal. Poderiam subir em árvores, comer carambola, goiaba, chupar manga, roubar amora do vizinho ao lado, seu Ademar Chifrudo... como as crianças aprendiam palavrões com ele! Mesmo num dia escaldante, lá no quintal do Francisquinho, a temperatura era mais amena. Mas, antes, o gêmeo mais novo primeiro precisaria ver o colega na rua. Crianças assim têm algo em comum: são moleques vadios. Se o colega já não estivesse na rua, então não invadiria o quintal da casa dele. Mas Chico já poderia estar no quintal, ora... Deixa pra lá.

A questão é que rua interessante era encontrar colegas na mesma para brincar... o dia inteiro: futebol no asfalto, pique bandeira, pique alto, polícia e ladrão, bola de gude... Aliás, boa parte, pois a vadiagem de Taiuô na rua era interrompida nas horas de refeições pelo seu avô. Aquele homem alto, magrelo, encurvava-se às avessas, insuflava o ar e, como o lobo mau dos três porquinhos, expirava um forte ar de seus pulmões. Assim, como um bezerro desmamado, berrava-lhe do portão e acenava fazendo gestos indicando que era para comer. Seu avô era um homem muito amável ao neto. Uma cena engraçada, mas triste, era quando sofria de enxaquecas, pois se deitava no chão da sala, com um pano embebecido de álcool ou com batatas na testa. Recordo-me bem que esse vascaíno, amante de futebol, interessantemente jamais tentou tornar o gêmeo cruz-maltino.

Tudo bem. Mas estava o gêmeo ainda a sair de casa. Não tinha passado pela porta da copa para o quintal. Nessa transição, o menino perdera-se em pensamentos, não apresentando a atenção requisitada para não se dar com a cara na porta. Estava pensando em rever, no dia seguinte, o filme Gigot. Anúncio da sessão de férias. O interessante era como temas como o desse filme o tiravam do ar. Deve ter sido a influência franciscana do avô!

Mas... ao passar pela porta, parece que sua visão, pela desatenção, transformara-se. Embora ele estivesse se direcionando para o portão, espaço de um grande corredor, sua visão era de outro ângulo do quintal. Taiuô morava num bairro com nome em homenagem ao centenário da Independência do Brasil, onde havia fábricas de doce, de tecidos, de sabão e açúcar. No terreno, o quintal de sua casa era igual a um L. Se me recordo bem, o portão ficava na parte direita do L e a porta da copa, na parte de cima dessa linha vertical. Logo, naturalmente, sua visão somente poderia ser dessa linha, da porta da sala de jantar ao portão. Contudo, ao passar por esse umbral, estava conseguindo, não sei como, enxergar a parte frontal da casa, como se estivesse fazendo o trajeto contrário, do portão para a porta da copa.

Em cima da casa, Taiuô via alguns pássaros muito grandes se movimentando, sei lá... conversando. Na base da parte direita e interna desse L ficava a frente da casa constituída pela sala e pelo quarto de seus pais. Acima desse quarto, no telhado, havia uma construção tradicional como se escondesse algo atrás. Além disso, havia o retrato, em azulejo, de um santo católico. Era um beiral com a imagem de São Jorge. Seu avô colocara esses azulejos com as próprias mãos úmidas do suor de sua vida.

Taiuô seguiu adiante olhando aqueles pássaros. Lembrei-me do jardim zoológico da Quinta da Boa Vista, onde em uma ocasião tinha visto, com meus pais, harpias gigantescas. Enfim, pareciam pessoas fantasiadas de aves untadas à óleo de tão reluzentes. O gêmeo mais novo pensou logo que se tratasse da fantasia da boneca Emília com aqueles pedaços de panos caídos pelo corpo. Ou na verdade poderia ser a Feiticeira do Castelo de Grayskull. Eu gostava muito de assistir ao desenho do He-man, que engraçado. Ou não! Poderia ser a mulher falcão do misterioso cavaleiro negro, do filme Feitiço de Áquila. Muito engraçado... todavia essa graça não durou o quanto ele desejaria.

Esses três pássaros o olharam e começaram a falar entre si. Eu disse a falar, mas pássaro não fala! E nem tem formato humano. Esbravejavam e apontavam para ele. Falavam que elas eram suas senhoras, pois lhes pertencia. Diziam que Taiwo era o feto do interior de sua apala! Mas que porra é essa de apala? Tá de sacanagem, né? Esbravejavam que eram as senhoras da noite, donas de suas entranhas. Elas regem o caminho de vida no qual ele veio ao mundo. Logo, o gêmeo deveria temer e obedecer às suas mães. Fato! Isso começou a causar espanto e medo. Apontavam-no e diziam que iriam pegá-lo. Pelo menos é o que eu entendi. Mas queriam agarrar uma coisa dele que Taiuô estava descobrindo... que tinha diferentemente de sua irmã, e igual ao seu irmão, pai, avô e amigos. Mãe do céu! Não acredito, não sei o porquê, mas elas queriam pegar o seu piru! Meu Deus, não! Botou a mão por cima das suas coisas. Gritando, elas pularam e voaram, sem bater as asas, em sua direção.

Nesse ínterim, a “criança que veio a gosto sobressai à vida” descambou a correr para dentro de casa. Sei bem que, moleque como era, eu corria pra cassete. Quando brincávamos de polícia e ladrão – nessa brincadeira, o oponente tinha de bater três vezes no corpo do outro para considerá-lo preso. Eu corria tanto que dizia que acionava a metade da velocidade da luz. O Galo, moleque lá do morro (nós morávamos no pé do morro), ficava puto com isso, pois pensava que me tocava três vezes consecutivas; me faz rir! Assim, nenhum “policial” conseguia tocar o meu corpo por três vezes consecutivas. Eu tinha patuá, corpo fechado!

Nessa época, o Jamaica, negro alto e macérrimo, assim conhecido pelo cabelo afro, ainda não tinha pintado a imagem de São Jorge no muro do santuário de São Cosme e Damião. Foi um bom tempo depois dessa pintura realizada que o morro passou a ser conhecido como Morro do Santuário. Diziam que essas duas santidades protegiam os “meninos da boca”, assim carinhosamente conhecidos os homens traficantes que sempre davam assistência alimentícia e judicial aos moradores. Se bem me recordo era muito legal mesmo! Quando chegava o dia santo de São Cosme e Damião, os “meninos da boca” davam doce, bolsas de alimentos, chinelos Samoa, tênis Rainha, jogavam moedas avanço. No entanto, o melhor e mais esperado era o torneio de futebol. Ah, como era bom. Passávamos o ano todo esperando esse momento. Todavia, sempre os campeões eram os mesmos: a equipe do Corte 8 ou a da Mangueirinha, time do talentoso baixinho e canhoto Sapatilha. Numa ocasião, meu time confrontou o do Sapatilha, que, embora a maestria com os pés na bola, achava-se malandro demais. Deu-me um chute na canela de maldade, por isso quase lhe dei uma porrada na cara, se meu braço não fosse contido pelo Fabinho Tecão. No final, perdemos por 6 x 2. E, lógico, o time da Mangueirinha fora campeão naquela tarde.

Retornando... Então, Taiuô tirou as mãos dos seus documentos e correu aceleradamente para casa. Embora acelerado, parecia homem na lua correndo das mulheres pássaro. E, ao contrário, elas eram rápidas de mais. Meu deus, me salva! Meu coração bate freneticamente. Corre, porra! Mas que merda de lentidão! Não sei como, mas “o último a vir” conseguiu entrar e bater a porta na cara de uma delas. Ufa! Mãe do céu! Despertei! Que susto! Que pesadelo! Que loucura! Meu coração!... está saindo pela boca. Meu corpo treme todo. Caraca, estou no quarto com meus irmãos. Graças a Deus. Estou todo suado e lacrimejando. Que vontade de mijar, mas não vou não! Vai que essas mulheres fantasiadas estão na sala me esperando. E se estiverem debaixo da cama?! No filme O Exorcista do diabo, o demônio ficava debaixo da cama! Desconjuro, meu Deus!

- Porra, Ké-rindê, tá maluco? Que foi? Me acordou, porra.

- Nada, só estava sonhando, Akin. Tô com medo...

- Volte a dormir, moleque filho da...!

(Conto do livro Sonhos e Estórias de Ibeji, de Fábio R. Penna)