RELA-RELA DE FULANINHOS
 

 
 
            Depois dos bafafás, como vão dizer por aí?  
 
          - “Olhe ali, o Fulaninho daquela Fulaninha!” 
 
          Vão se referir assim aos personagens desse caso. Ou seja, o sujeito perde a reputação e o nome. Não resolve  ter o bonitinho sido batizado nem registrado. A pessoa sabe disso como jogar para cima cai. Dá pelas cabeças, enganchar um troço desses numa vilinha futriqueira como o Lugarejo.
 
         Se bem que essa conversinha de boteco, na opinião do Polidoro, não tinha qualquer cabimento. Lugar errado, indivíduo errado, história errada... Conhecedor dos hábitos do amigo – agora “Fulaninho” -,  com as manias de jogar galanteios encostado nas patroas dos outros, um tipo até perdoável, vinha agora de um rolo descabido.
 
         Pois, direto no assunto, convenceu Fulaninha, uma solteira e bem posicionada, de que ele, um casado e pai das duas filhas, estava apto a comungar com ela uma vida a dois, proporcionando-lhe dignidade, merecido lar e posição de destaque na sociedade – sabe-se lá com quais relevâncias.
 
         Tamanha insensatez.
 
         Mas Fulaninho ponderava. O Polidoro, ora, ora, aí se vê analisando um lado só da situação: o de seu casamento com a Faustina. Aliás muito notável, ele e a Faustina vêm de longe mantendo aparências, relevando as filhas; o sentimento, a paixão, ah! isso já se foi há tempos atrás. O Polidoro só não conta com o fato de um homem maduro poder, plenamente, sustentar outro relacionamento, sem aumentar o prejuízo do primeiro. Com imparcialidade, coisa bem arrumada, sentia-se ele em condições de tocar adiante as duas casas.
 
         Assim.
 
         Explicando por altos, sem os tintins, via no Polidoro apenas o sustentáculo para a confissão de assuntos segredados, além de manter-se no propósito de ir adiante. 
 
          “- Decisão tomada”.
 
         De um lado, a Faustina, a quem rememorava. No passado, hum! que adoração por aquela mocinha franzina, dezesseis anos, namoro de colégio... Roubara a Faustina de seus pais, num sentido literal, que nele viam um João-Ninguém. Sabendo da má reputação na casa, ia ele lá pedir casamento? De São Paulo para cá, bastaram os galanteios, a moça tomou o partido certo e vieram embora, mesmo despreparada como era ela. E foi melhor: moldara a adolescente segundo as suas conveniências. Ensinara-lhe tudo. Tu-do! -  sublinhava  rompante.
 
         De outro lado, a Fulaninha.
 
 
                                                  * *
 
         Fulaninha, pelo que o Polidoro soubesse, tinha um emprego  importante na Loja de Departamentos. O amigo mesmo o apresentara a ela por ocasião de uma compra fajuta. Polidoro notou certas coisas, mas não deu pelos graus do andamento. Nada demais num ataque de galanteios por cima da gerente. Treco habitual, em sendo o amigo a referência.
 
         Não vai, agora, retirar da mocinha os predicados mais favoráveis, acometam-lhe quantos remorsos a realidade de hoje demonstra em relação à amizade pela Faustina. Fulaninha tem o seu futuro pela frente. Os dotes da idade e da formosura serão cruéis, se postos frente a frente com os da Faustina, mulher judiada pelos desmazelos maritais.
 
         Mas, seja ela quem for, ponderou Polidoro, acrescentando à crítica um defeito cristão, tanto piora, porque a humilhação imposta à Faustina complicaria o compromisso familiar. A faustina...
 
         - A Faustina, minha mulher - atalhou o Fulaninho - estará fora desse assunto. Aliás - enfatizou – aliás, minha família toda nem sequer vai suspeitar.
        
          Ergueu o copo de cerveja com desaponto, encarou o conteúdo através do vidro, tomou um gole quadrado:
 
          - Acrescento mais: Suponhamos você, Polidoro, assim inconformado e batendo atrás para me incriminar: é prudente saber, caro Dedo-duro, a Faustina vai tomar duas atitudes na bucha, no ato: a porta na sua cara e mais: adeus amizade! Adeus, consideração por você, meu amigão.
 
          - Jesus Cristo! – bradou o Polidoro. - Dedo-duro dessa maluquice, em troca de qual favor? 
 
          Fulaninho que voltasse os olhos para o tamanho desse povoado. Essa gente alcoviteira, tudo vendo e tudo comentando até para os vira-latas dos becos. Baixaria geral. Logo na fase onde o Fulaninho estava, contemplado com um cargo de confiança na Secretaria? Lamentável, dar sopa aos desafetos.
 
          Ponto irrefletido, esse. Mas Fulaninho dissimulava com o copo na mão, bebericando argumentos titubeantes. Enquanto o Polidoro, dono da situação,  permitia transcorrer os segundos de recomposição. Convicto, o outro perdia as forças; deixou-se  tacar a cartada fatal.
 
          Porque, uma coisa ainda mais grave, tão grave, e se o Fulaninho não a considerara até agora, mencionaria apenas para daqui sair sem peso de consciência. As gentes dela, da Fulaninha, então como estariam encarando esse rela-rela?
 
          A família dela, ninguém admite. Fulaninho tinha essa consciência, confessou. Burrice,  suporem os dois, Fulaninho e Fulaninha, a aprovação absurda de um relacionamento nessas proporções. Na exclusiva dependência de serem aprovados, ora, por que os planos feitos pelos dois em terem uma vida juntos?
 
          Polidoro foi-se da mesa impressionado. A partir dali, passou uma semana remoendo a insensatez daquele quem, até prova em contrário, tinha o defeito único:  galantear para as patroas dos outros.  Mania até perdoável. Mas, passar em cima de tantas regras como agora, era de se indignar. Um sujeito cheio de  estudos, com responsabilidade pelo cargo de confiança, desmerecer uma  esposa, desqualificar uma gerente de loja, desconsiderar as famílias, desrespeitar uma sociedade?...
 
          Remoeu uma semana sustentando a ira de um segredo incabível. Até  o Fulaninho ocorrer-lhe numa calçada de rua, mas tão eufórico, tão festivo, que o Polidoro também se viu aliviado.
 
          Fulaninho também vinha de uma semana conflitante. Mas, ainda ontem, os dois criaram coragem de irem aos pais dela. 
 
          “- Se a felicidade de nossa filha estiver dependendo disso...!”
      
          Os pais consentiram.
 
                                                     * * *
 
          A ocupação romântica de ambos, Fulaninho e Fulaninha, daqui por diante seria planejar a casa própria e segura para, digamos, coabitarem, etc. Brevemente, o casamento no Paraguai. Dali, numa escapada estratégica, lua-de-mel pela Argentina.
 
          - Um lixo - rebelava-se o Fulaninho, dispondo de um copo de cerveja, sentado no barzinho costumeiro às tardinhas de sexta-feira. - Um lixo, o resto dos princípios que herdamos. Existe um tabu fora de moda, agonizando na boca de uns, pois a imensa maioria já declarou o bom de viver. Veja a molecada de hoje: em qual paraíso eles vivem. Têm compromisso?  É pecado o sujeito ficar com uma agora e outra mais tarde? 
 
          Polidoro manteve-se com a unha desenhando na tábua da mesa, sem contornos definidos e sem pensamentos. O outro era a espontaneidade em pessoa, a ponderar sobre o destino assumido: 
 
          - Um amor de duas... um amor de duas, eu sei lá... Os pais dela só querem a felicidade dela, cara. Eles mesmos fizeram questão de assumir: “- Se assim  ela quer para ser feliz ?...”
 
          Com a idéia fixa, justificava-se:
 
          - Eu sei lá: o amor de duas...
 
          Polidoro explodiu. Pois ia dizer: simplesmente, os dois são pé e chulé. 
 
          - Eu sei lá: o amor de duas... - e riu, porque era só constrangimento. - Certo, o pé e o chulé: ela me aceita como eu a recebo. Estou em condições. A hora é propícia. Todo homem tem a hora de sair da rotina. Entende? A questão é estar na hora agá. O favorecimento é geral, sem erro. Além do mais, estamos de caso sério.
 
          Do bolso das calças tirou jóias e exibiu. Deu os valores, as cifras e as parcelas. Riu. Adolescente com experiência. 
 
          Polidoro parou e foi pausando, de saco cheio. Falou manso, rindo da mediocridade do resto do mundo reservado ao amigo. Os trecos todos, as balelas, as grandezas, tudo dentro do padrão milenar da poligamia clandestina, quando o sujeito cego caminha afoito para o abismo. Vivem considerando a sua superioridade em relação aos miseráveis, todos quantos fazem das tripas o coração para o bem da moral e dos costumes. Apêndices elementares surgindo à baila, pondo o espertalhão em evidência ao contrário: a casa da amante, para quem a norma manda dar tudo o melhor; a mobília mais luxuosa; as jóias e as viagens e os esplendores de um relacionamento que terá de sobrepor-se a tudo quanto já vivido no passado... Ou, de que valeria planejar com a amante um mundo de novidades?
 
 
                                             * * * *
      
          Nada, nada estremecia o castelinho de sonhos dos Fulaninhos.
 
          Enquanto isso, os fins das férias escolares. Findava, também, o período favorável à fantasia. Com a esposa e as filhas legítimas retornando, Fulaninho ligou para a Fulaninha. Marcou de encontrar-se com ela.
 
          Mantendo a mesma naturalidade, seguiu entrando pelos departamentos da loja. E apresentou à Faustina a Gerente. Segurando a mão da esposa, emendou  tratar-se  da fulana, de quem já lhe havia feito referências. Muito prestativa, pura simpatia, essa gerente!
 
          Faustina não teve um pingo de ciúme. Exibia os penduricalhos, os brincos, as pulseiras, as gargantilhas e todo o ouro antes destinados a outra.
 
          Fulaninha, depois de cair em si,  andou sofrendo um treco e vive em crise. O tratamento recebido, jura que vai dar em dobro, aguardando ocasião propícia.
 
                                                  * * * * *
 
          Fulaninho, nesse exato instante, ocupa os espaços da sala do Polidoro, onde ostenta a mais cristalina consciência de ter agido pelo certo. Explica: havia reconsiderado sua posição social no Lugarejo: marido e pai de família, cheio de estudos, cargo de confiança no serviço público, responsabilidades subseqüentes...
 
          Segue: as gentes assim como ele e o Polidoro, dentro da sociedade, são a ponta alta da pirâmide, com sério compromisso em dar os melhores exemplos...
 
          Assim por diante. E tal.
 
          Bebericando o suco de maracujá,  servido sempre em copos de visitas, relanceia mais para os lados da esposa do outro. Com a coragem de costume, até o dado momento já enfileirou dois ou três paparicos à patroa do Polidoro.




Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2.a Edição.


Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 17/03/2012
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