Vou Fazer uma Tatuagem!

Gustavo foi o tipo de adolescente que cresceu amparado na coragem dos outros. Viajava para a praia, mas estava sempre bizuntado de protetor, escondido sob o guarda-sol. Na hora das fotos, jogavam sobre seus braços uma prancha de surf qualquer. Aparecia lindo na revelação. Na formatura do colegial fotografaram seu corpo abraçado em uma garrafa de pinga. A embalagem era verdadeira, mas o líquido era a mais pura água mineral da região. Flash disparado e pronto. Gustavo agradeceu aos amigos e voltou a dormir.

Quando combinaram de pular de pára-quedas, ficou preocupado. Como forjaria uma situação tão inusitada? Felizmente seus amigos, grudados desde a infância na rua em que moravam, nunca o deixaram na mão. Uma taxa adicional permitiu que Gustavo fosse fotografado com todos os aparatos, agarrado na porta lateral do monomotor. Flash disparado e...

- Ficou ótima, Gus!

- Valeu! Agora vocês já podem decolar.

- É isso aí! Já, já a gente se encontra.

- Tá...

- Espera na sombra porque o sol tá forte.

- Pode deixar.

Nem mesmo a mãe sabia da covardia do filho. Os encontros semanais com as amigas do bairro rendiam elogios às habilidades de Gustavo. Notas excelentes sem perder o lado aventureiro, esse é meu filhão. Assim ele era vendido à vizinhança. Na estante da sala as provas conclusivas: fotos do rapaz fazendo carinho em um leão, que fora sedado pelo amigo biólogo de Gustavo, segurando um peixe espada, empalhado às pressas pelo tio do mesmo amigo, pronto para pular de pára-quedas... como vocês já sabem.

Mas uma das imagens transpirava verdade. Escondida entre as fotos de Gustavo na grade anti-tubarão e correndo da polícia, arranjada pelos amigos que foram aceitos no alistamento militar, havia um beijo. Aliás, o beijo. A análise mais detalhada confirmava: os lábios grudados na morena de corpo magro realmente pertenciam a ele. Sem truques ou encenações. Flash disparado e ponto. Nunca mais se viram.

Mas foi com essa lembrança que acordou gritando e encharcado de suor às 5 da manhã. Prevendo o desespero atropelado da mãe, gritou do quarto que estava tudo bem. Mentira. Gustavo sentia um aperto estranho, igual a quando achou que morreria em uma encenação no globo da morte, feita por um amigo que bebera demais. “Devagar, Jorge! É pra fingir!” Percebeu que o melhor momento da sua vida, aquele beijo, fora verdadeiro. Levantou correndo, ligou o computador e preparou o e-mail.

“Caros amigos, hoje decidi abrir mão da farsa que criamos juntos. Agradeço o esforço de vocês durante todos esses anos. Aliás, desculpa por ter vomitado na sua blusa, Magrão. A encenação do sushi fica pra uma próxima vez. Enfim, quero ser eu mesmo. Ou melhor, mostrar que posso ser como vocês, sem truques ou teatros. Por isso está decidido... vou fazer uma tatuagem.”

Mal amanhecera e o celular de Gustavo já disparava. Amigos querendo saber se ele continuava com a medicação, outros lamentando o sacrifício proposto por ele e alguns vibrando com a coragem do colega. Chegou a vez dele, pessoal!

Gustavo pediu para que o táxi encostasse na porta do lugar. Tinha carteira de motorista mas morria de medo de dirigir na cidade... bem, e em qualquer outro lugar. Abriu a porta e quase desmaiou com os gritos excitados dos amigos e os flashes simultâneos. Todos estavam lá. Antes que terminasse de cumprimentá-los sentiu uma aproximação desconhecida. Alto, gordo, cabeça raspada, argolas largas afundadas no nariz, beiço, orelha, sobrancelha, língua e sabe Deus onde, e tatuagens pelo corpo inteiro. Ideogramas, tribais, frases, personagens infantis, dragões, lobos uivando, caveiras sorrindo. Só pelos desenhos na canela, percebeu:

- Vo-vo-cê é o Carniça?

- Isso, mano! Você é a vítima?

- Vítima do quê???

- Tô brincando, mano! Relaxa! Foi você quem ligou marcando?

- ...Sim.

- E ficou perguntando se a gente tinha autorização da vigilância sanitária?

- ... Er... foi, sim.

- Relaxa! Ninguém nunca morreu aqui..

- Sério...? Que bom...né...?

- Chega de papo. Vamos começar.

Os amigos de infância tentaram se espremer em direção à pequena sala, quando foram parados pela mão gigante do Carniça.

- Aqui dentro, somente eu e o moleque que vai fazer a tatuagem.

- Mas é que ele...

- Questões de higiene.

- Mas a gente sempre...

- Fora!

Carniça largou a multidão reclamando e bateu a porta. Já ajeitava as seringas quando percebeu a palidez de Gustavo. Os dentes batiam com força, as mãos transpiravam em excesso e os olhos se voltavam para a porta fechada, de onde vinham gritos de apoio dos amigos.

- Tá tudo bem, mano?

- ... estou morrendo de medo.

- Se você quiser...

- O quê?

- Dá pra fazer de um jeito sem dor.

- Mas e eles?

- Só vão perceber mais tarde. Você ganha alguns dias.

- ... tá bom. Pode ser.

- Beleza.

- Mas liga o motorzinho, por favor.

- Certo.

Trinta minutos depois, Gustavo sai sorrindo do consultório improvisado. Todos se juntam para ver aquele exemplo de coragem tardia, de libertação traumática. A aglomeração insana faz Carniça intervir.

- Ô! Parem de cuspir na tatuagem! Vão infectar o curativo!

Todos aceitam o conselho, mais por medo da reação do monstro pintado do que das bactérias em si. Enquanto responde as perguntas atropeladas dos amigos, “doeu muito?”, “você chorou?”, “ficou com medo?”, Gustavo acena a cabeça para seu tatuador oficial e promete voltar em breve.

Antes que a farsa se apague de vez.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 23/01/2007
Reeditado em 01/03/2007
Código do texto: T356702
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