Sílvia

Não tenho vergonha de dizer onde a conheci. Foi dentro de um ônibus elétrico que fazia a linha Lapa-Luz numa tarde de céu nublado. A princípio não dei muita importância ao fato de o único banco vazio ser aquele ao lado dela. Ela, diga-se, era uma morena magra e alta, cabelos compridos, negros e lisos que exalavam um perfume de maçã. Bastou poucos segundos para que eu olhasse com mais atenção aquela belezura que resumia a cor e a forma da Naomi Campbell com olhos de Beyoncé. Um espetáculo.

Ela lutava contra a agenda do telefone celular e repetia uma série de comandos à exaustão. Já um pouco incomodado com os tu-tu-tus, que o aparelho emitia, comentei distraidamente:

- Esses telefones estão cada vez mais complicados né ?

Sem tirar o olhar da agenda mas sorrindo com o canto da boca ela respondeu:

- Não acho um número...

Eis que num flash, um resumo da história do cinema nacional passou pela minha cabeça, me recordei de todas as cantadas bestas dos filmes exibidos no Canal Brasil e soltei uma flechada certeira:

- Ah, este celular está com defeito. Só de ver dá para perceber !

Foi então que nossos olhos se cruzaram. A beleza indescritível daquele olhar verde claro contrastando com a pele marrom chocolate, me deu a coragem que eu precisava:

- Sim, está com defeito. Não vê que não tem o número do meu telefone aí ?

Não sei exato se foi a cafajestada, o tom de voz, a palhaçada, ou o quê , mas o fato é que ela disse:

- Não seja por isso, qual o seu número ?

Após ditar demoradamente a seqüência numérica, percebi que a cantada havia me distraido e quase perdi o ponto onde deveria desembarcar. Botão apertado e ônibus desacelerando só tive tempo para dizer já do lado de fora do veículo:

- Você não me disse seu nome, nem o seu número !

Ela deu uma risadinha e um tchauzinho. Esqueci o caso e pensei com meus botões que até que não tinha perdido a forma. Quando digo a forma, digo a presença de espírito ou o elan necessário para me aproximar de alguém. Fui para casa assobiando a música “Flagra” da Rita Lee e me sentindo o próprio Rodolfo Valentino. Após algumas horas me esqueci da história e me perdi na rotina cotidiana.

Certo sábado, derramado no sofá e zapeando a esmo, tentando evitar as tranqueiras televisivas, me aborrecia com um Corinthians x Ituano enquanto o sono não chegava. Quando já estava entregue aos braços de Morfeu ouço o telefone tocar.

- Alô !

- Oi , pensei em você ! era uma voz de mulher.

- Quem está falando ? perguntei já nervosinho e pensando num possível trote.

- Eu, a Sílvia !

- Que Sílvia ? respondi impaciente querendo o conforto do travesseiro abandonado.

- Não lembra de mim ? Você me passou seu telefone dentro do ônibus naquele dia...

Saltei do sofá como recruta em dia de inspeção militar. Não era possível que a conversinha mole tinha dado certo.

Marcamos encontro para o dia seguinte num shopping próximo ao centro da cidade. Anotei na agenda do meu celular: Sílvia, 20 horas, domingo. Cheguei dez minutos antes como mandava a etiqueta: cabelo cortado, penteado, roupa nova, perfumado e uma excitação de adolescente virgem. Os ponteiros do enorme relógio da praça de alimentação do lugar pareciam zombar da minha impaciência. 19:55, 19:57, 20 horas. Eu esperava e Sílvia não aparecia. Já tentando afastar o fato de ter “tomado um bolo” da garota, decidi esperar mais um pouco. Quinze minutos... meia-hora... uma hora se passaram e nada. Ela havia furado.

Derrotado, humilhado e reduzido a condição de zé-mané, rastejando e torcendo para que o chão abrisse ali mesmo e me tragasse para sempre, cheguei até um bar na Avenida São João. Pensei que apenas um pouco de álcool afogaria minhas mágoas. Quando o garçom com cara de Reginaldo Rossi me trouxe a bebida , a tristeza que varria minha alma deu lugar à indignação e telefonei para ela. Telefone fora de área ou desligado. Nunca uma mensagem me torturou tanto.

Nessas horas é que o Satanás que mora dentro da gente sai da casinha. Comecei a ter pensamentos persecutórios e não me daria por vencido se não soubesse de fato o motivo da desfeita daquela noite. Mas não é só Pinocchio que tem um Grilo Falante, meu Anjo Bom dizia para deixar tudo para-lá , se valorizar, para quê ficar se remoendo, etc... O Satanás foi mais convincente.

Alguns dias se passaram e me preparei para começar uma busca pelo paradeiro de Sílvia. Telefonei novamente e... Nada.

Me recordei de um colega de trabalho que conhecia alguém na Telefônica e pedi para interceder ao meu favor. O caso era simples: com o número fornecido, ele conseguia o nome completo do titular da linha e o endereço da pessoa. A operação durou poucos minutos.

Já tinha o principal agora iria atrás da minha vendetta pessoal . Queria explicações da piranha e estas teriam que me convencer senão enchia a vadia de porrada. Afinal, assisti àquele monte de filme do Jece Valadão pra quê ? O Anjo Bom falava dentro da minha cabeça:

- Deixa isso pra lá...

O Satanás, por sua vez, cutucava:

- E aí ? Vai deixar barato ?

Com o auxílio de um guia de ruas descobri o endereço da morena. Ela morava numa avenida da Santa Cecília , um bairro na região central de São Paulo, bem próximo de onde eu me encontrava naquele momento. Fui até lá.

Logo avistei o prédio de um cinza desbotado, fachada pichada com aquelas inscrições que ninguém entende nada e que beiram o rabisco, no térreo funcionava um salão da Igreja Universal do Reino de Deus e na calçada uns meninos, que deveriam estar na escola, pulavam de um lado para outro. Na redondeza podiam se ver bares, barbearias, uma farmácia ainda com balcão de madeira (vintage, em linguagem de hoje) e pequenos comércios. Um cheiro de urina pairava no ar. Algo sem dúvida muito decadente.

Cheguei até a portaria dizendo:

- Quero falar com a Silvia, apartamento 17.

O zelador com olhos vermelhos me olhou com atenção.

- O que você é dela ? Parente ?

Preferi blefar.

- Sou namorado ! disse com toda segurança.

Foi nessa hora que os olhos do porteiro começaram a marejar.

- Vem comigo filho ! disse repetindo o slogan imortalizado pelo Goulart de Andrade, caso o Goulart de Andrade tivesse uns 45 anos e fosse baixinho.

- Olha você, que eu não tenho mais coragem. Disse já virando de costas…

Foi então que eu vi a cena assustadora : o sangue espalhado pelo chão, porta e parede pintava de vermelho todo o lugar.

Sílvia havia sido chacinada com a irmã e duas sobrinhas pelo cunhado violento.

- Paralisado, só tive tempo de comentar aos prantos :

- Quando foi isso ?

- A resposta me rasgou o coração:

- Domingo passado. Por volta das sete, oito da noite.

Alexandre Pereira
Enviado por Alexandre Pereira em 23/03/2012
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