NINHO DE MAFAGATO
 
 
 
                                      Um
 
          - “Encontrei um ninho de mafagato com quinze mafagatinhos; quem quiser mafagar, procure  quinze mafagatos, mas em outros ninhos”.
 

          - Eia, lá. Como é que é esse troço aí? 
 
          - “Encontrei um ninho de mafagato com quinze mafagatinhos; quem quiser mafagar” ...
 
          - Esse troço aí, como é que é? Mafagatos, é? Ninho de mafagatos, é?
 
          - “... ninho de mafagato. Com quinze mafagatinhos.
 
          Micuim quer explicar. Seu Anselmo dos Guerovais, um desatinado, esse um não dá o tempo devido, só encavalando as perguntas numa coisa só.
 
          - Como é que é esse troço de mafagatos, aí nesse bilhete?
 
         Dobrando o papelinho de caderno e guardando no bolso, Micuim demonstra ciência: 
 
          - Mafagatos, coisas que dão nos ninhos não por essas bandas. Quinze mafagatinhos de uma ninhada. Enchem o mundo, ficam por todo canto. Cada mafagatão chega com quinze mafagatinhos, logo é a peste alarmada. Seu Anselmo dos Guerovais então faça as contas: cada mafagatão com quinze mafagatinhos...
 
         - Eia lá, moleque destrambelhado na tabuada. Boca fechada um momento: mafagatão e mafagatinhos  o quê?
 
         Micuim, aparando o sol com a mão, aprumadinho e petulante, perde a paciência com o fazendeiro. Porque, fala  língua de gringo será? Retoma o papelinho do bolso, principia ler o bilhetinho: 
 
          “- Encontrei um ninho de mafagatos com quinze mafagatinhos...”  Ela escreveu aqui, com a letra dela, a menina filha do Gerente. Izaurinha. Ela me mandou entregar lá nos Guerovais, para o Fiômen do  seu Anselmo. Tem outras letras aqui no final, para ele saber. Só não falei, porque  ninguém aqui  deu as chances. Tem outras letras aqui em baixo, assunte aqui quem quiser saber. Para o noivo, em pessoa, andar atrás do ninho dos mafagatos,  uns para a Izaurinha ter.
 
         A Izaurinha mandou o bilhete, com recomendações, porque era assunto dela com o noivo. Dar nas mãos dele. Entrementes, Micuim pedalando a bicicleta veio alcançar  seu Anselmo dos Guerovais , quem volta das compras no Lugarejo, indo para as terras baseando três da tarde. 
 
          - Se o seu Anselmo vai nessa direção das suas terras, vou de rabeira, indo para o mesmo trecho, levar o recado ao seu Fiômem.
 
          O fazendeiro, por bisbilhotar e de saber que o Micuim não seria das utilidades para um assunto grave, ralhou qual assunto haveria de ser.
 
          Micuim então tinha puxado do bolso o papelinho, meia folha de caderno, para ler com as poses da importância:
 
          “- Encontrei um ninho de mafagato com quinze mafagatinhos...“
 
          Ali, seu Anselmo dos Guerovais estacou a carroça lotada dos trecos adquiridos no Lugarejo. Nos sentidos dele, os trecos de mafagatos ele nunca tinha escutado falar. Mas, ao Micuim, um traste sem importância, não iria ele agora dar os gostos de saber.
 
          Filho Homem, pelo visto, seu Anselmo andou sabendo: vinha de uns tempos noivando com a mocinha do Gerente, uma estudante com ele. Pelos certos, os Guerovais não tinham ainda favorecido o namoro, mas de pura culpa do rapaz,  um amuado com as irmãs e o pessoal todo de casa. Prevenido, seu Anselmo já chegou um dia  de comunicar nos Guerovais: “- Vamos ter uma hora de visitar o Gerente, por conta desse rela-rela com a família dele”. Entrementes, as meninas aqui dos Guerovais achavam necessário primeiro o Filho Homem autorizar a visita, para não dar contrariedades.
 
          - A Izaurinha, essa uma do Gerente, tem a noção dos mafagatos? - seu Anselmo cutuca o mensageiro, agora já retomando deslanchar a carroça para as terras.
 
          - Hein, seu moleque? Ela já matinou onde tafulha as fuças, fuxicando com esses... mafagatos?
 
          Micuim calcula que sim. A Izaurinha do Gerente mandou até o recado de saber qual canto encontra os mafagatos, que são um bandaréu mas em parte errada desses cafundós. Ele, Micuim, desconfia dos rebuliços em nome dos mafagatos. Porque o Lugarejo é um saber só, de quem os povos dos Guerovais não se cruzam e ainda sustentam a pendenga desde os antigos: com os da Areia Branca, no Castorino.
 
          Espera seu Anselmo, no que ele vai dar agora, certeza de muito enfezado. A Areia Branca, os Guerovais não dão trela desde gerações antigas, por rixas já caducas, mas relevadas. 
 
          Seu Anselmo evita prosa referente. A Areia Branca, qualquer rapa-prato até os graduados, todos conhecem os sistemas dos Guerovais: a Areia Branca, na consideração deles, não existe no mapa.
 
          O moleque adianta a bicicleta, para mirar de frente a cara ruim do fazendeiro: calado, nada perguntando, quem sabe no aguardo do assunto morrer por ali. 
 
          - Caso que, sendo os mafagatos, eles, imagine só,  acham de dar os ninhos mas é na Areia Branca. Os mafagatinhos praguejam mas para as bandas do Castorino, por lá, na Areia Branca.
 
          ... ?
 
          - A Izaurinha, esses mafagatos conhecidos dela, ela quer os da Areia Branca. Enguiço vai dar, sendo noiva -  no entender do Micuim -  de tantos perequetês e outros caprichos. Viver querendo um troço só de arrumar no Castorino. Mandar o noivo, assunte bem, mandar o noivo atrás da Areia Branca, quando os Guerovais tampouco têm no mapa.
 
          ... ?!
 
          - Se esses mafagatos dessem no fim do mundo, o Filho Homem, em indo atrás para a noiva, sequer ia carecer das preocupações. Imagine logo ali, no Areia Branca, pertinho de buscar, mas, desse jeito, sem permissão de atender a noiva, porque o mapa nem tem...
 
          Seu Anselmo ralha. Areia Branca, Areia Branca, Areia Branca... Se o Moleque então não perdeu o respeito, ninguém mais dá conta. Repetição de coisa, dumas coisas birutadas: Areia Branca, Areia Branca, Areia Branca...
 
          - Porque esses mafagatos - argumenta o Micuim -, porque esses ma-fa-ga-tos são uns malcriados e só dão nesse lugar aí, onde os Guerovais acham que não tem no mapa. São os mafagatos os senducação, por não pular nenhum para as bandas de cá com os ninhos nas terras do seu Anselmo. Esses uns, sim, eles mandam os povos daqui lamber sabão, prestigiando os cantos onde os Guerovais desconsideram...
 
          - Tudo bem, ô moleque que engoliu a vitrola. Tudo bem. Essa Areia Branca, o  que ela tem? Hã? O que tem de bom nessa Areia Branca, ô moleque destemperado?
 
          - Tem os mafagatos...
 
          - Os mafagatos, os mafagatos... Sabe quanto meu ouvido virou paiol, tendo de escutar a ladainha lá de trás: mafagatos, mafagatos...?
 
          - A Izaurinha, ela quem é mais senducação ainda - relembra o Micuim, com mágoa. - Esse povo do Gerente, eles  pegaram e me cercaram na rua com a bicicleta e o resto, para andar procurando pelo Fiômen. Eles são mais senducação também. Aqui, o bilhete como prova. Seu Anselmo tome gosto de enfezar, mas não com quem segue as ordens; com a Izaurinha e com a colundria dela, Seu Anselmo pode enfezar até amanhã cedo, porque a culpa é deles.
 
          Deste pedaço de caminho em diante, principiam as terras dos Guerovais.
 
          Com a congonha frondosa e de sombra boa, a carroça pára para o descanso comunal aí debaixo. Seu Anselmo recolhe os petrechos do cachimbo. Compenetrado nos derradeiros assuntos, mas não pia.
 
          - Gadão, hein, seu Anselmo?
 
          Recuado no matinho apegado, ali o grosso da vacada leiteira, aproveitando da sombra. Bezerrinhos já apartados, dão no dono as saudades de ver na mangueira quanta maravilha do gado só  aumentando.
 
          - Aprendeu contar gado, moleque, ou só aprendeu tabuada de mafagatos? Se desaproveitou lápis e caderno aprendendo bobices no grupo,  então aprume e passe a conta nos tantos da minha vacada.
 
          Já o céu na terra, Micuim despreocupa por ter enfezado essa gente melindrosa. Se aprendeu contar? Espie no jeito: 
 
          - Una, duna, tuna...
 
          - Eia, ô moleque agourento. Sossegue os modos de apontar o dedo em riba do gado, tentando azangar as leiteiras. Falta de talento e embromação, o modo de contar assim com os dedos. Contador de gado relança e não pestaneja, nem mexe, nem chia. 
 
          O moleque abrocha encabulado, perdendo as trelas de confiança, só perdendo as trelas de confiança com os Guerovais. E segue contando no agrado do dono:
 
          - ...Cento e setenta e cinco, cento e setenta e seis... Cento e setenta e seis... Cento e setenta e seis...
 
          Não vê outros gados. O dono, de poucas modéstias, confirma outros tantos por lá do matinho, nas pastagens melhores.
 
          - Viche.
 
          A congonha espicha os galhos em riba da estrada. A mula Rolinha balanga o pêlo para, agora, enxugar o suor e soltar o sal minante das carnes. Um gaviãozinho-penacho voa da macaúba direto no lombo do Marruás, o touro de enxertia. Deita a escarafunchar os carrapatinhos daqui e de acolá, quando o marruá estremece daquela ternura da pele mais íntima sendo beliscada.
 
          - Essa Izaurinha é bicha danada, seu Micuim.
 
          Micuim espanta com o dono dos gados retomando a prosa do caminho.
 
          - Essa Izaurinha do Gerente arrumou os tinos calculados, ô moleque-de-recados. É a noiva do Fiômen, é isso?
 
          Moleque balança a cabeça. É.
 
          - Sendo a noiva, capaz do Gerente nem desconfiar da filha, mas lá é sagaz, ah! se é. Pois a coisa é o seguinte, ô moleque aluado: o caso dos mafagatos é dos planos os mais sabidos que andaram por aí. Noiva, quando chega ser, aí larga os pensamentos para só pensar numa coisa: o casamento. Mexe e vira, borda e pinta, o pensamento é emendado: o dia de casar. E qual dia? A data, que a Izaurinha nem mandou marcar, mas decerto tem os problemas antes. Decerto vale a demora. Mas o  noivo anda por aí, solto. Nos Guerovais, o sossego chega quando chega casado, porque antes, ainda solteiro, a farra é direto. Fiômen, lá em casa, aonde dá a entender, do casamento arrumado nem fala. 
 
          Micuim não pisca. Seu Anselmo engoliu a vitrola.
 
          - Essa Izaurinha correu e lembrou dos mafagatos. Onde são os ninhos? Hein? Não precisa encolher no saco feito gato, porque  a Areia Branca, dis’que lá os mafagatos moram e não são troços prestativos. Essa Izaurinha podia querer os ninhos das araras, outras coisas mais valiosas, quando nos Guerovais estão uma em riba do outra, voando de bando. Mas ela foi querer do noivo os tais mafagatos, trecos atafulhados nessa Areia Branca. Sabe a idéia dessa uma?
 
          Não. Micuim mordeu o beiço, até triste de não saber.
 
          - Os mafagatos e os mafagatinhos, dando na Areia Branca, naqueles Castorinos, a Izaurinha premeditou o noivo  de-dia e de-noite encafurnado e matinando os jeitos de atender nos caprichos dela. Porque essa uma tem uma coisa a perder e dez a ganhar: o noivo não ligando para os mafagatos, então o casamento já pode pensar em outro; mas, indo correr para a Areia Branca, alguém precisa mais garantia que a noiva casa?
 
          - Hum-hum! - responde o Micuim, e nada mais vai dizer, só escutando os Guerovais quanto são sabidos.
 
          - Essa Izaurinha é bicha atinada, ô moleque mandado. Pegou o caderninho das aulas e rabiscou as bobices da cabeça dela... Fez o recado.
 
          Micuim principia reler o bilhetinho, prestativo e avalista: 
      
          “- Encontrei um ninho de mafagato com quinze mafagatinhos...”
 
           Bobices, esses mafagatos. Seu Anselmo discorre as explicações, para o Micuim tomar a ciência do caso desvendado. Nos Guerovais, o noivo, primeiro vai  achar graça e, depois de tanto rir, todo mundo ali acompanhando a cara desconsertada, caça um canto e segue os raciocínios devidos. As bobices nunca vistas nesses lados. Mais logo, justo os Guerovais vão pôr um marmanjo na estrada e de a cavaleiro, indo perder o tempo quando a noiva quer ganhar.
 
          Essa Izaurinha do gerente do Banco, deu o nó sem ponta. Pelos regulamentos dos Guerovais, os mapas de tudo quanto é mundo não tem a Areia Branca, desconsiderada pelas brigas dos antigos. Entrementes, sendo um canto onde dão os mafagatos, os trastes que ela mais quer...
 
          Sendo uma noiva dos Guerovais, quem decerto vem para as terras morar capaz até com os mafagatos juntos, para dar os ninhos aqui, e tudo mais vindo morar depois: os Guerovaizinhos, uns chorando e outros já engatinhando e até correndo atrás das criações...
 
          Sendo das gerações mais novas,  na Areia Branca junto com os Castorinos, lá o Filho Homem dê os jeitos de cruzar com eles e amainar as encrencas caducadas, correr atrás dos mafagatos...
 
          Para não largar uma noiva dos Guerovais na diferença.
 
 
 
                                        Dois
 
 
          Os cachorros latindo aqui na entrada, o Castorino quem atende, e a visita é o Filho Homem.
 
          Na Areia Branca.
 
          Antes da concordância de sair atrás dos mafagatos, em casa as solteiras dos Guerovais eram dos contrários. As gerações antigas, na consideração delas, como então descansariam nos túmulos, agora se revirando pela traição tamanha? Nunca, nem nunca mesmo, os Guerovais ajoelhariam para os da Areia Branca. Entretanto, acertando os acertos lá entre eles, o que ficou certo foi: os Guerovais tinham calculado o melhor: melhor, atender a noiva deles, nos desejos dela de ter os descritos mafagatinhos. 
 
          O pai tinha autorizado: a Areia Branca, dependendo das atrelagens por lá com os Guerovais, já podiam constar no mapa. Esmiuçou tantas vezes o porquê de concordar com a Izaurinha, sendo os mafagatos dela umas bobices, contudo avaliava rendimentos indo atrás.
 
          Seu Anselmo, era um dia de conferência familiar, ele tinha chegado numa fase e segredado para as solteironas: aparecendo os pretendentes para os Guerovais, e caindo no agrado dele, o negócio dos casamentos sai sem arenga-arenga. Era o caso da mocinha do Gerente. Família considerada e boa, por quê maçaroca no rela-rela do Filho Homem com a noiva?
 
          O noivo, quando viajou, o que se via nele era um empolgado com os mafagatos. Estremeceu mesmo só quando encostou nas divisas da Areia Branca, porque ali os respeitos eram exigidos. Nessa hora, bateu a raiva da noiva. Calculou: será uma caprichosa quem merece tanto? Segurando os freios do cavalo, por vezes até atiçando as intenções de voltar atrás, passava a rememorar o caso com a Izaurinha.
 
          A Izaurinha ia à escola, primeiro de-dia, depois entrou para a turma da noite. Nesse meio tempo, conheceu a mocinha quando dava asas mas para um do time, quando eram os jogos das classes. Jogador o Filho Homem nem era mesmo. Entrementes, mais tarde não parava de ver quando ela, nos relances quase sem querer, mirava para ele com a feição interessante. Foi a hora de gelar por dentro e  desconsiderar quem era afamado de jogar no time.
 
          Ali, contaram que era filha do gerente do banco, acabado de mudar para o Lugarejo. 
 
          Implicar, o Gerente nunca ligou. A Izaurinha, só tinham ela em casa, não deu problemas no namoro, quando o tempo corria: passava de ano na escola e vinha perto a formatura, com ela formando depois no Normal, para lecionar.
 
          Noivado, noivado que seja, isso é o costume da cidade, quando um sujeito habitua no rela-rela e não mexe na data de casar. A pessoa custa demorando, os dali favorecem com o empurrão: vira noivo. Os Guerovais seguem acatando, porque nem cheira, nem fede. Adianta entenderem o noivado da forma diferente,  só de acordo com as festas de convites e bolos, do jeito que acontecem nas bandas de cá, nas fazendas? Sendo o que se confirma na casa do Gerente, que a Izaurinha é noiva, com o conseguinte Filho Homem  situado no lugar de noivo, não serão nos Guerovais as conversas contrárias.
 
          Nem contrariando a vez de vir de lá as bobices de, como agora, as palhaçadas dos mafagatos.
 
          Os cachorros da Areia Branca já manifestando a pantomina, o Filho Homem se vê na arapuca da Izaurinha. Qual valia correr na meia-volta, se ele só vinha vindo por querer agradar a noiva? E o Castorino já amistoso atendendo  quem chega no terreiro, de que adianta querer odiar a noiva, o Gerente, os Guerovais e todos?...
 
          Castorino manda entrar.
 
     Tem os assuntos mais atuais, não derrapa para os passados de tantas gerações antigas, quem não viu as permissões de se atrelarem a Areia Branca com os Guerovais.
 
          Ali, vem primeiro um café, depois os bolinhos fritos e quentes da frigideira. Castorino, mais falante. Tantas vantagens dos de cá, com as coisas melhores e muitas as maiores de todo o mundo. O jeito dele: de não conhecer no mapa o ponto que existam os Guerovais.
 
          Pelas tardes das horas, o Filho Homem sem nenhuma demonstração de nem ir embora e nem contar porque veio, o Castorino principia esgotar os assuntos e tem a necessidade de saber:
 
          - Os Guerovais, de muito longe que são, decerto vieram para pernoitar uma noite?
 
          O Filho Homem confirma. Certamente, porém preparado até para dormir no paiol, na casa dos arreios, onde o Castorino providenciasse sem nenhum incômodo.
 
          A melhor cama, no melhor quarto, com a melhor acomodação,  Castorino altera a voz e manda preparar para quem ocupar, mas bem depois de comer a janta.
 
          A janta é farta de uns preparos até da cidade, com as salsichas, as ervilhas, as azeitonas e os molhos da macarronada.
 
          A janta, no meio dela, Castorino altera a voz e manda virem os doces de leite. E, usando a voz a mesma, atropela a visita, interpelando a causa de tanta honra dos Guerovais por riba da Areia Branca, cujo comparecimento prestigia a janta e o pouso.
 
          São os mafagatos.
 
          Mas o noivo se corrige a tempo.  Mafagatos não são. Quando que o Filho Homem, da boca dele, vai sobrar coragem de pronunciar “são os mafagatos”? Deixará ver a risada do Castorino? Sim, é o que ele calcula, o Castorino zombando: “mafagatos  o quê???”
 
          Não sendo os mafagatos, atina uma saída em boa hora. De uns tempos corridos, os Guerovais vêm com um problema de não resolver por lá, já tentado os recursos pelos arredores, e nada. Por ser de muita estima, que era da finada mãe, uma vaca desaparecida  só faltava ver na Areia Branca.
 
          Resta outra desculpa, senão remexer com a mãe e inventar a lorota mais absurda da vaca sumida?
 
          A vaca sumida terminou não dando ao Castorino descansar no sono. Dali da cama, dormir não podendo, endireitava os assuntos da janta, não tinha cabimento os Guerovais dando importâncias de correr na Areia Branca ver vaca sumida. 
 
          - Comentam tantos gados deles... Será?!
 
          O sol longe de nascer, dois cavaleiros no pasto das vacas procuram e escarafuncham por quem era da falecida, a vaca de estima, uma fumaça e mochada, carregando a marca dos Guerovais.  O Castorino faz a devida questão de levar o Filho Homem constatar cada animal tem por aqui, no primeiro pasto, também por ali, nos outros pastos, e mais por lá, em tantos pastos, todos quantos dão para avistar na Areia Branca. 
 
          Almoçaram correndo as comidas caseiras, sem as latinhas que foram da janta, mas com os doces agora das frutas.   Castorino então tinha avisado:
 
          - A vaca sumida dos Guerovais, digo bem, difícil achar  arribada na Areia Branca, pastando no meio do gado daqui. Porque nunca foi notada vaca diferente. Quando visto, não tendo a correspondente marca “CB”, de Castorino Borges na paleta direita, ele manda um peão correr os vizinhos até devolver a fujona. 
 
          Percorrem as demais cercanias da Areia Branca.
 
          De-tarde, meio escurecendo, deu hora de regressar para a janta e dormir outra noite.
 
          Filho Homem, pelas lembranças decerto até morrer, não viu na vida tantas terras e nem constatou quantas vacas não eram a fumaça da falecida mãe, por mentira de não poder dizer a respeito dos mafagatos.
 
          Indo para os aposentos da segunda noite, Castorino vem para o Filho Homem avisar de amanhã, amanhecendo o dia, primeiro vai ter assunto particular de ver, para depois seguir ajudando campear a fujona dos Guerovais. 
 
          E foi e veio muito de-madrugada, resolvendo os problemas dele. Eram as pessoas da Areia Branca, quem voltavam das férias na Comarca. Mulher do Castorino, com uma filha e um netinho baseando cinco para seis anos.
 
          Antes, almoçaram o almoço de muitas gerações que evitaram, tendo nas panelas hoje, juntos, a Areia Branca e os Guerovais. Mas com pouco resultado, enquanto a prosa seguia favorecendo a Comarca, com novidades de lojas e badulaques.  Castorino, vindo  para a rede e mencionando os Guerovais, contou o trabalho dado pela vaca fujona. 
 
          Quem acaba de saber, acha graça. Só.
 
          Dorme tranqüilo, ronca na rede, confiante na educação da Filha da Areia Branca, para quem mandou pegar o Cavalo Branco, o preferido nos passeios dela quando chega da Comarca.
 
          Para, em lugar do pai, auxiliar campeando o animal de tantas valias lá nos Guerovais, cuja dona até morreu e os herdeiros não podem viver sem.
 
          Nos pastos, o Cavalo Branco faz bonito. É bonito. Comportado. Zombeteiro em horas certas e permitidas. Conduz a montaria parecendo com os maiores orgulhos já vistos. A dona expõe as graças que sabe, quando chama as rédeas, quando cutuca mas de leve as esporas, quando firma as botas nos estribos, quando livra o corpo para o galope...
 
     Ah! a Izaurinha... 
 
     A Filha da Areia Branca, o que ela demonstra? Quanta destreza. E a autoridade no falar, ainda a imposição no respeitar...?
 
          Vindo da Comarca, quando lá demorou o tempo que o Filho Homem nunca saberá, vindo da Comarca, sabe dar conta das posses do pai, igual numa rotina. Cada rês e cada canto das terras, tudo no controle dela, vivo na memória. Até sabendo onde a fujona haveria de achar, sendo recantos não vistoriados por ontem. Até adiantando no lugar onde jamais uma rês daria trabalho de procurar...
 
         Ah! a Izaurinha...
 
         Quanto ódio da noiva. E do Gerente. Das gentes todas agora lembrando, decerto todos sabendo e já rindo da cara dele, um tonto de acatar os caprichos até dos lá de casa, as irmãs e o pai. Como foi se atafulhar numa arapuca dessas? Tem explicação para uma pessoa abalizada enrabichar com quem fica noiva e vem e comete palhaçada para todo mundo rir da cara? Qual diabo é o treco pedido pela Izaurinha? Qual inferno dá os ninhos desses pestes, sabendo o Filho Homem já haver batido cada palmo e cada lonjura, mentindo procurar vaca e nada de se deparar com os mafagatos? A bunda numa ferida pura, esfolada no arreio, tanto incomoda. E ainda a cabeça zunindo com as prosas dessa Areia Branca, os petulantes daqui só nas vantagens. O Castorino sem perder a vez de futucar e menosprezar. O que dirá dessa talzinha – quem chegou da Comarca protegida da mãe e ainda puxando o molequinho dela, filho de um quem sabe Deus qual, porque o nome do genro estica-se o tempo e ninguém comenta – o que dirá dessa talzinha, metida e exibida para tudo quanto é volumoso nessa Areia Branca?
 
           Bonita, bem bonita, essa filha da Areia Branca. 
 
          Bonita no jeito de adiantar qual cafundó onde jamais uma rês daria trabalho de procurar. Nesse lado do brejo, de puro manguezal. Aí, o pai, por se conformar, mandou largar desprezado. As criações evitam. Nada dá, nem nasce, nem presta. Assim, um limpeiro das terras estragadas vive no abandono. 
 
          Bonita essa filha da Areia Branca, no modo natural de mencionar: 
 
          “- É um capão das terras largadas, onde ninguém pisa e ninguém entra,   assim desde os comentários da passagem dos mafagatos dando os mafagatinhos. Todos nessas bandas de cá.”
 
 
 
 
 
 
                                        Três
 
 
         O casamento do Filho Homem deu boato de boas prosas atravessando os confins, todos os convidados comparecendo com os presentes e ficando para a maior festança que jamais deram nem no Lugarejo, nem na Comarca...
 
         Seu Anselmo dos Guerovais vive demonstrando quantas felicidades, acudindo com os abraços nos amigos de perto e muitos até de tão longe e sem ver há tempos.
 
         Micuim, esse um se vê metido no terno branco e gravatinha azul, feito no Alfaiate por encomenda do seu Anselmo. É um indo e vindo e rindo dessa largura, vaidoso de ser culpado pelo casório nos Guerovais. Sempre lembrará das lambanças feitas por responsabilidade da Izaurinha.
 
         Para a festança nos Guerovais, essa moça do Gerente, essa Izaurinha, ela nem  veio. Errada nos planos dela, decerto. Quem de lá para chegar e prevenir que o Filho Homem, em indo atrás dos mafagatos,  voltava para os Guerovais mas só enrabichado pela Filha da Areia Branca?
 
         Da igrejinha da fazenda, a noiva, dito o sim, agora joga para as moçoilas espevitadas o buquê que foi das alianças, quando uma cata e dispara a carreira, na alegria de casar em breve. Os noivos compõem o figurino, porque simpatizam de qualquer jeito, nos agrados, abraçando padrinhos e convidados, alegrando e até chorando nessa alegria. Porque são notados na trela aqueles que um não tinha o outro no mapa. Por isso choram os Guerovais e a Areia Branca reunidos. Só a felicidade redobrada.
 
         Na mesa arrumada para noivos e padrinhos, todos aí empanturrados das comidas boas, as prosas são alteradas com as duas fazendonas de gado no meio do coincidente negócio.
 
         As vantagens sobram. Todas eles, pelas contas dos mafagatos, esses trecos nunca reparados por ninguém; jamais vistos até por quem vive e fala deles. Esses mafagatos, parecendo assunto combinado, vindo dos acertos com outras coiseradas, vieram mesmo  atrelar aquela gente briguenta de gerações passadas.
 
          Daí, seu Anselmo satisfeito por lembrar caladinho dos mafagatos, vem o Micuim para um recado. Escrito num papelinho de envelope e cartão de Felicidades, certo para envolver os noivos, havendo  um mensageiro para fazer  surpresa.
 
          Para os Guerovais receberem lá fora um presente, de coisa que eles mesmos tinham mandado buscar,  sem sequer existir mais. 
 
          Tendo um treco de receio, seu Anselmo adiantou prever, agora estremecendo a dúvida: 
 
          “- Será o povo do Gerente, nessa hora vindo com os mafagatos e querendo arruinar os bons andamentos  da festa?” 
 
          Demora encabulado, mantendo o escondido, para não mostrar preocupação no casamento. Ficou suspirando:
 
          - Esses mafagatos, quantos dilemas?...
 
          Os Guerovais , de uns períodos para cá, vivendo os rebuliços dos mafagatos,  quem são?
 
          Dando os jeitos dele, manda o Micuim desculpar e devolver o presente. Sendo os mafagatos, nos Guerovais já não precisam ter.
 
          Micuim, então favorecido pelo cartãozinho de Felicidades, adianta que não é da Izaurinha, não. 
 
          A bem da verdade, nem são os trecos dos mafagatos. 
 
          Um peão da Areia Branca, quem veio de a cavalo pela encomenda de devolver. Chegou tocando  uma vaca fumaça e estimada daqui, cuja fujona no manguezal de um pastinho estragado, foi ficando onde ninguém perdia tempo de procurar.


                                             FIM

Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 27/03/2012
Código do texto: T3578111
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