CADÁVER LIQUIDO

CADÁVER LIQUIDO

Andava meio trôpego, segurando-se pelas paredes, assim pelas beiradas em cima da calçada, sem conseguir atinar de onde vinha, mas sabia que voltava de um lugar que se divertira bastante. Levou uma mão fechada em punho à altura do estomago, bem ao meio da estampa monstruosa de sua camisa preta, por que a revolta crescia lá dentro, revirando suas entranhas, e sua cabeça sentiu um peso de elevador que sobe; suas pernas fraquejaram, e segurou-se mais firme contra a parede do que devia ser uma catedral ali na calçada. Não, não enxergava os olhares curiosos, indignados e cheios de compaixão. Riu, um riso fraco embora, mas era um riso necessário e sincero, amarfanhando o rosto juvenil, límpido, imberbe, e desta forma desabou sobre a calçada com ar fatigado, a cabeça inclinada; seus cabelos claros e longos desalinharam-se. Sentado na laje úmida e suja da calçada ele concentrou-se apenas naquela revolta em suas entranhas. Resfolegou como um naufrago tentando vir à tona, abriu a boca respondendo a impulsos violentos das próprias entranhas revoltadas e despejou na calçada, bem ao seu lado, um jato grosso de vomito de matizes infinitas de cores. Alguns transeuntes olharam perplexos, enojados sem deixar de prosseguir, com pânico de se deter naquela imagem, mas ele apenas cerrou os olhos e sorriu, um sorriso cheio de baba visguenta que descia do resto do caldo fétido que expelira de sua boca.

Ele pensou, respirando arfante, e arquejando sentindo de novo a náusea, trazendo-lhe um desespero de tremor, e nem mesmo conseguia abrir os olhos, escutou uma voz áspera e seca – que mal se podia adivinhar se era feminina ou masculina – exclamando de pavor e misericórdia, mas se perdendo quando ele libertou novamente o caldo nojento e infernal na mesma base, tornando mesmo a calçada intransitável naquele pedaço junto a ele.

Com os olhos fechados, ele escutava apenas sua respiração difícil, sentia seus nervos tremerem, o sanguecomo que lhe abandonando as veias pelo suor frio que o tomava como um cobertor amaldiçoado. Ah, aos poucos, assim derreado na calçada, junto ao seu vomito, apoiando-se nos braços fracos, a cabeça estourando, ele lembrou-se de algo, algo que rodava, rodava: a cena. Os amigos, uma garrafa incolor aos poucos perdendo sendo seu liquido dourado, a musica caótica e sinfônica, e a paisagem cinza e deturpada, mais ainda como girando, agitando-se. Ele fora todo movimento, e suas entranhas agora era revolta, mas aos poucos – em meio aquele cobertor de suor frio – tudo ia se apaziguando , e ele sorria, sorria com a corda de baba grossa a descer pelos lábios delgados e gretados. Acho que ouvia a própria respiração arquejante, e esta respiração acelerava-se como o ritmo atordoante da musica, sim agora podia se lembrar, sem lembrar assim, sem perceber que passavam carros, ônibus pela estrada, e o olhavam pela janela, com seus olhares de misericórdia e indignação, mas nestes olhares estampados em quadradinhos de janelas escondia-se a vergonha deles mesmos por se enxergarem naquele vomito que aos poucos a cada olhar que passava ia se tornando o Vomito. Ele mesmo, ali sentado, fraco, quase em estado de coma, rindo sem saber por que, não sabia do vomito, nem mesmo sabia de si, pois se sentia livre, aos poucos o sangue voltando às veias, aquecendo o suor frio que ainda lhe escorria pelos cantos íntimos, por dentro da bermuda jeans. Pensou ouvir risadas, exclamações de asco junto a altas gargalhadas, mas se riu, pois nem abria os olhos, nem mesmo se movia, e há ninguém inspirava socorro. E não soube de que forma fechou bem os olhos, caiu profundo num abismo como se fosseo morrer talvez, mas nem se importou, pois não sentia nada, nada, mas sobrenadava em algum lugar escondido dentro dele uma paz viscosa e úmida como aquela escuridão confortável .

Não soube bem quanto tempo passou, e seus olhos se abriram, cansados, os movimentos do corpo como respondendo a impulsos, reconhecendo-se num leito alto, ouvindo – como retumbante e longínquo – os choros e lamentos de algum lugar, e obliquamente seus olhos desviaram-se, cansados, para o tubo de plástico dependurado ao seu lado na cama que estava agarrado a veia do seu braço mais imóvel. Subiu na atmosfera, lúgubre e de iluminação frouxa, um cheiro acre de éter, mesmo o confortou e o aqueceu, e ele se lembrou, não da libertação, derrubado na sarjeta, mas do palco, da alegria, do caos e da sinfonia, e, sobretudo da garrafa transparente que não largou, suspendera-a como um troféu até que esvaziasse todo seu conteúdo dourado.

Abriu um sorriso fraco e pálido, sem mover a cabeça do travesseiro branco-gelo, percebendo que chegava enfim a família, e teve coragem apenas para respirar fundo.

Mas o seu vomito colorido e azedo descansou na sarjeta por dias, levantando futum, enojando e envergonhando os transeuntes que nem aguentavam olharem para si mesmo, virando a face contrita em caretas repulsivas como diante de um cadáver abandonado ali. O resto de nós, disse um jovem gordo, de rosto imberbe e sujo como na roupa, mas não disse para si mesmo, disse com gestos de escarnio que a maioria que parou para prestar atenção enojou-se ainda mais, sabendo que era então o que restaria de cada um. Um vomito. O Vomito!

Rodney Aragão