A Fé do meu amigo Tomé...
(*) Homônimo de São Tomé, um dos doze apóstolos de Cristo, que, a princípio, duvida da ressurreição de Jesus, e diz necessitar sentir as Suas chagas para se convencer.
Da janela daquele sobrado amarelo, o meu amigo Tomé, todas as terças, quintas e sábados, ao cair da tarde, a tudo assistia e ouvia:
- “Dá-me cá a tua mãozinha, Dulcinéia. Anda, anda logo, vamos, vamos depressa.”
-“Pra quê correr tanto, Jaziel!? Ainda faltam cinco minutos. Cuidado com os carros. Olha as poças d’água, vamos por aqui!!!”
Jaziel, invariavelmente, usava terno azul marinho, camisa branca e gravata preta. Levava sempre consigo, colado ao peito, um livro de capa dura, um guarda-chuva, uma surrada pasta modelo OO7, e, sempre a olhar para a frente, parecia o mais convicto e determinado dos homens...
Dulcinéia, a companheira, vestia saias longas e escuras, blusas abotoadas; trazia os cabelos impecavelmente trançados, e, tal qual Jaziel, também parecia não ver hora de chegar...
Apressados, andavam de braços dados, como se um conduzisse o outro, como se o tempo nunca os pudesse esperar, e o mundo estivesse sempre prestes a acabar...
Jaziel e Dulcinéia jamais perdiam um culto, nem mesmo em dias de ventania, granizo e chuva fria.
A verdade é que Jaziel e Dulcinéia, ao contrário do meu amigo Tomé, jamais precisaram ver para crer...
Era sempre às terças, quintas e sábados que, naquele mesmo horário, Jaziel e Dulcinéia passavam pela janela do meu amigo Tomé, viravam na esquina adiante e, a passos largos e decididos, seguiam para o Templo “Arautos do Evangelho”, onde em um passado não muito distante, funcionava a casa lotérica "Morada da Sorte" ali, do outro lado da praça, bem atrás da Escola Municipal “Águas de Março”
(...) Vai ver Jaziel e Dulcinéia acreditam que exista um inferno com labaredas imensas, gente estranha e maltrapilha, lobisomens gigantes, ecos assustadores e gargalhadas aterrorizantes.
(...) Ou, quem sabe, que exista um céu com anjos levitando por campos floridos e ensolarados, chuvas prateadas, luares vespertinos e multicoloridos arco-iris noturnos.
Sempre que os via, lá do alto, o meu amigo Tomé sussurrava :
Ah!!! se eu também pudesse conversar com Ele...
Ah!!! se eu tivesse certeza de que Ele me ouviria...
Ah!!! se eu pudesse. Ah!!! se eu pudesse!!!
Hoje pela manhã, ao abrir a janela, para surpresa do meu amigo Tomé, ali, onde outrora se lia “Arautos do Evangelho”, agora, uma silenciosa placa, em letras garrafais anuncia:
Oficina Mecânica e Funilaria São Cristóvão
Sob Nova Direção
(...) Parece que os “Arautos do Evangelho” alugaram um velho galpão no Jardim das Oliveiras, do outro lado da Ponte João Dias, e, a partir de então, os cultos passaram a ser celebrados às segundas, quartas e sextas.
Ainda assim, o meu amigo Tomé, todas as tardes, à mesma hora, religiosamente, debruça-se sobre a janela do sobrado amarelo só para assistir ao pôr-do-sol atrás da linha do horizonte...
Fim
Conto de Zizifraga
Abril de 2012.