Diga 69!

- Preparou a câmera, Moisés?

- Tudo certo. Lente brilhando, bateria carregada, fita virgem.

- Bom. Só uma coisa me preocupa.

- O que foi?

- Essa fita é virgem, mesmo?

- Claro que sim! Acabei de abrir!

- Você coloca a mão no fogo por ela?

- Ah, Alencar! Pára de sacanagem! E eu ainda caio na sua, porra!

As piadas eram comuns entre Moisés e Alencar. O objetivo principal nunca foi fazer graça, mas acalmar os nervos. Há sete anos trabalham juntos na divisão de reportagens de um famoso jornal paulista. “O Gordo e o Magro”, comentavam. Emprego habitual não fosse pela especialidade dos dois: reportagens extremamente arriscadas com câmeras escondidas. Propinas entre políticos, bandidos negociando bocas de fumo com policiais militares, venda de armas clandestinas, tráfico de crianças, turismo sexual? Essas mesmo.

Nenhum dos dois teve a chance de estudar. “Aprendi na marra”, dizia Moisés. “Eu ainda não aprendi!”, brincava Alencar. A verdade é que a experiência no jornalismo investigativo fazia pouca diferença na hora H. O jornal precisava de alguém com nervos! “Cara, na hora bate uma adrenalina, você controla o suor, mas sabe que tá fervendo, uma frase mal colocada e POW!”. Moisés sempre se assustava com o barulho violento que saía da boca do colega. “Ele acha que tá num filme!”, ria enquanto guardava o equipamento no Gol Bolinha. “Eita carro apertado!”, ria de novo, sofrendo de saudade da Paraty preta que usavam em algumas filmagens. “Rodízio de carro? Prefiro de carne!”, finalizou com uma gargalhada enquanto fechava a porta. Sem cantar pneu, saíram acelerados.

- Qual a pauta de hoje, Moisés?

- Como, qual a pauta? Você não sabe, pô?

- Tô brincando. É aquele lance do diploma?

- Esse mesmo. Tem um povo vendendo diploma falsificado. Pagou, levou!

- E nós vamos ser os “clientes”.

- Na mosca!

Após confirmarem com a sucursal o endereço onde seria a armadilha, contornaram o local e estacionaram na rua de trás. Testaram as minúsculas câmeras presas aos óculos, esconderam os documentos originais no porta-luva e passaram o roteiro pela última vez.

- Eu começo falando, né?

- Isso! Mantém a atenção dos caras em você e deixa que eu me preocupo com as imagens.

- Manter a atenção é fácil! Lindão do jeito que sou!

- Não é o que a mulherada diz.

- E desde quando você dá ouvido a mulher?

- Isso é! Mas então, são dois diplomas de medicina?

- É! Devem estar nos nomes que passamos pelo telefone.

- Beleza. Dr. Walter Monteiro e...

- Dr. Miguel Cunha, prazer!

- Sempre brincando, né? Certo. Vamos nessa.

- Só se for agora!

A rua estava movimentada quando entraram no prédio. Segundo andar, número 69. “Belo número, hein?”, perguntou um. “Delícia!”, respondeu rindo o outro. Sempre cabia uma piada entre os dois. Essa foi a última antes de tocarem a campainha. Uma voz grossa atravessou a madeira.

- Quem é?

- É sobre a roupa da formatura.

- Que curso?

- Medicina.

Senha correta. Porta aberta.

A conversa durou aproximadamente duas horas, mas nunca foi ouvida. Enquanto alguns choravam o sumiço dos dois colegas inseparáveis no jornal, outros lamentavam os riscos da profissão. “Vamos promover uma parada pela paz! Primeiro, o Tim Lopes, e agora eles? Isso tem que parar”. Os mais realistas sabiam que panos brancos pouco mudariam a situação. “O jornalismo é isso! Um risco após o outro! Quando escolhemos essa profissão sabíamos disso!”

A verdade é que a fita e o carro nunca foram encontrados. Os corpos dos dois, muito menos. Alguns comentam que foram desmascarados e queimados em uma favela a alguns quilômetros do local. “Deve ter sido o microfone, um chiado e pronto, detona o disfarce.” Outros dizem que foram enterrados em um terreno baldio perto do campinho de futebol. Uma mulher, inclusive, jura pela alma da mãe que os dois foram vistos fazendo cirurgias no interior do Paraná, sob os nomes de Dr. Walter e Dr. Miguel.

Mas isso, acreditam, só pode ser piada.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 29/01/2007
Reeditado em 29/01/2007
Código do texto: T362848
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