Carlitos das tintas e dos pincéis...

(....) Ah! se Romildo fosse apenas mais um Raimundo, poderia servir como rima e solução métrica para uma despretensiosa prosa poética. Mas não. Romildo nada tinha de Raimundos. Romildo era único. Romildo era apenas Romildo.

Romildo parecia gostar de pintar as paredes lá de casa. Fazia-o, sem dizer palavra, valendo-se apenas de algumas cores e da obediente dança dos pincéis...

Depois atravessava a rua, e, já do lado oposto, na outra calçada, contemplava a sua obra, e a comentava com quem por ali passasse.

(sic) “E aí, ficou bom !?” “Eu que pintei.” Assim era Romildo.

Romildo tinha uma companheira. Liede era o seu nome. Liede era suave como um sorriso de criança, fiel como um cão Labrador. Liede de tudo fazia para vê-lo feliz a colorir a “pacata indiferença” de paredes, portas e janelas.

Pouco se sabe sobre aquele relacionamento, a não ser que Liede, em uma noite de granizo, ventania e chuva fria, teria lhe dado abrigo, e o levado para morar consigo em um dos muitos cantinhos do mundo no extremo sul da metrópole.

Da última vez que lá em casa trabalhou, Romildo pediu-me que lhe assinasse um recibo de pagamento. Tentei convencê-lo de que cabia a ele assinar tal recibo, pois era ele, Romildo, o prestador do serviço, e eu apenas mais um dos seus inúmeros contratantes. Não consegui. A solução encontrada foi escrever uma declaração, apondo a minha assinatura ao lado da dele, dando conta de que Romildo, uma vez mais, colorira aquela casa nas tonalidades “amarelo terra” e “verde pátria de chuteiras”. Romildo parece ter gostado da maneira como as cores foram descritas, e, como promessa é dívida, ao cabo dos trabalhos, o bom Romildo ainda foi presenteado com um telefone celular e um paletó que, mesmo depois de algumas idas e vindas da lavanderia, caíra-lhe como uma luva...

Alguns diziam que Romildo e Liede teriam se mudado para Lavras, cidade do sul de Minas Gerais, quase na divisa com o Estado de São Paulo. Outros diziam que Romildo e Liede teriam alugado uma casa de dois cômodos no Grajaú, no limite do município, próximo à Represa Billings, já a caminho da Serra do Mar.

A verdade é que, sabe-se lá por que razões, Romildo e Liede partiram sem se despedir, sem fazer alarde,...

(...) É bem provável que Romildo jamais venha a saber da imensa estima e admiração que temos por ele, e o quanto lhe somos gratos por todas as vezes que, com sua arte, coloriu as nossas portas, janelas e paredes, e pelo muito que o seu silêncio nos ensinou...

E hoje, já em 2011, ao abrir o programa Word numa fria e ensolarada manhã de julho, deparei-me com esta Declaração à Praça.

Por desconfiar de certa dificuldade que o bom Romildo pudesse ter para entender a dança das letras, prontifiquei-me, antes de ali apor a minha assinatura, a lê-la para ele.

Dei-lhe uma cópia, e, por alguns segundos vi-o sorrir e, agradecido, dobrá-la e guardá-la em uma velha carteira de plástico, onde um espaço vazio era reservado a duas fotografias 3X4.

Lembro-me bem de que naquele dia, Romildo estava mais ansioso do que nunca, precisava sair mais cedo. Romildo tinha uma entrevista agendada com um famoso comunicador de uma emissora de rádio AM, que lhe prometera empenhar-se na tentativa de encontrar uma pista fidedigna que o levasse ao paradeiro de seus pais biológicos...

Romildo nem imagina que um dia, sem que ele de nada desconfiasse, talvez por sua pureza, ou, (...) quem sabe, se por suas histriônicas atitudes, dera-lhe o codinome de “Carlitos das tintas e dos pincéis”...

E que aquela casa, que com tanto zelo e dedicação costumava pintar, talvez esteja hoje necessitando de outras demãos de tinta poesia...

Eis a declaração que, com votos de Felicidades, um dia lhe entreguei:

DECLARAÇÃO À PRAÇA

Eu, Inácio França, declaro, a quem possa interessar, que Romildo Amorim de Jesus Nogueira pintou o imóvel sito à Rua Francisco Solano, 425, Vila dos Prazeres, Parque dos Manacás da Serra, cidade de São Paulo, pelo valor de R$ 800,00 (oitocentos reais).

Informo ainda que o imóvel foi muito bem pintado nas cores “amarelo terra” e “verde pátria de chuteiras”. E ficou lindo!!!

Aproveito a oportunidade para agradecer ao estimado Romildo pelo excelente trabalho, bem como, através da presente declaração, recomendá-lo para outras empreitadas.

Os trabalhos tiveram início no dia 02 de dezembro de 2007, e foram concluídos em 13 de dezembro de 2007.

Por ser a presente declaração, a mais fiel expressão da verdade, firmamo-la em duas vias de igual teor.

Inácio França Romildo Amorim de Jesus Nogueira

São Paulo, 13 de dezembro de 2007

FIM.

Conto de Zizifraga

Dezembro de 2011

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 03/05/2012
Reeditado em 28/09/2015
Código do texto: T3646955
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.