A FAXINA NO FIM DO MUNDO

Eu confesso

Saquei 300 mangos com o cartão magnético do segurado fúnebre

Retiro mensalmente a grana depositada pros falecidos a título de proventos de pensão por morte

Este é o meu esquema

Estelionatosinho basal contra a Previdência Social

Todo mundo rouba nessa porra

É a globaliladrão

Moramos no interior

Terra de ninguém

Onde se mata por vintém

Trabalho na Caverna do Capeta

Sou Servidor Público onde Judas perdeu as botas

Passo a vida coçando o saco e pensando merda

Não faço nada o dia todo

Vamos ao que interessa

Voltemos alguns meses atrás

Eu era casado e esse é o ponto

Minha mulher era a lascividade de minissaia

Até aí tudo bem

Casei por isso

Mas não

Ela era bem mais incisiva

Descobri que ela não se limitava a receber olhares dos outros

Numa das minhas várias noites entediantes a convidei pra termos relações no mato, bem como na adolescência.

Dei-lhe um beijo, os parabéns, ela deu de ombros.

Pegamos uma estrada pro interior, pra lá da casa do caralho, lá na puta-que-pariu.

Deixei-a lá com os caras das correntes e seus cachorros de coleiras de ouro

Na volta uma charrete atravessou meu caminho

Tentei frear, o carro derrapou e bateu.

Nada demais, amassou meu para-lama e quebrou uma roda da charrete do Zé Cachaça.

Ele caiu

Tava lá um bêbado do INSS estendido no chão

Sem sair do carro meti o pé do flagrante

Desde então minha mulher está desaparecida

Benditos pitbulls e correntes

Nesse dia fui dormir ansioso, de luto.

No dia seguinte, depois do almoço, fui pro trabalho e soube da morte do Zé Cachaça.

Fiquei incrédulo, mas nosso amigo Jorge ajudou muito falando do esquema dos proventos de pensão por morte, por sermos os Oficiais de Registro Civil da circunscrição local, o assento de óbito era lavrado por um de nós dois, se não o fazíamos dentro de quinze dias a contar do falecimento, somente poderia ser feito à vista de prévia autorização judicial.

Deixamos vários prazos passar

À época nenhuma pessoa se interessou pela morte do Zé Cachaça

Um cara sozinho

Uma bicha aidética sem família que nunca prestou favores a ninguém

Eu e o Jorge também gastamos a pensão do Zé Cachaça

O desaparecimento da minha mulher foi muito triste pra cidade, principalmente pros homens que apreciavam sua generosidade.

As investigações até agora não tinham dado em nada

Hoje levei o Jorge ao encontro dos caras das correntes, os mesmos que conheceram minha mulher meses atrás.

Benditos pitbulls

O Jorge também comia a minha indigníssima esposa

Viraram comida de cachorro

Até o fim do ano pretendo terminar a faxina no fim do mundo

Vocês também comeram minha mulher?

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Meus dois amigos de infância, pacatos policiais da pequena cidade onde moramos, botaram-me pra dentro da viatura, incrédulos da confissão e, com os olhos cheios, levaram-me pra delegacia.

Às vezes lembro-me dos lábios carnudos e das unhas pintadas de branco da vagabunda