Cem dias sem laços - Cap XIII - O drama de Anamaria

_ Eu não te disse que ele viria? É pra você deixar de ser cético.

_ Bobagem! Não tem a ver.

_ É claro que tem, Môzinho. Você sabe que nunca me engano com essas coisas. Venho sendo avisada há dias. A própria natureza mudou para a sua chegada. Viu as minhas buganvílias?

_ Não seja ingênua, Môzinho. Estamos às portas da primavera, é natural que a natureza se refaça com essas primeiras chuvas...

Alberto ouvia sem querer e sem alcançar uma compreensão satisfatória a conversa dos dois velhos. Não sabia por quanto tempo dormira. Depois da farta refeição que tivera, o corpo cansado exigira uma sesta numa naquelas convidativas redes armadas nas mangueiras, e como seu anfitrião meio embriagado ocupou uma delas, não hesitou em aboletar-se na outra. O sono viera quase que imediatamente. Acordou com aquele cochicho quase inaudível. Devia ter se mexido sem querer na rede, pois Anamaria mudou de repente o tom da conversa:

_ Acha que eles virão hoje?

_ É claro que virão. Eles vêm todos os sábados.

Alberto jogou os pés para a direita da rede, ergueu o tórax espreguiçando-se:

_ Desculpem. Acho que dormi mais do que devia.

_ Não se constranja. Respondeu Anamaria. Sinta-se a vontade.

_ Pode me dizer que horas são?

A anfitriã consultou seu antiquado relógio de pulso:

_ São quatro horas.

_ Bom. Eu preciso ir andando.

_ Ah! Que pena! Disse a boa senhora. Estamos gostando tanto de sua presença. Nosso filho Lauro Júnior está pra chegar com sua família. Moram em Belo Horizonte, mas vem sempre nos finais de semana.

_Seria uma alegria conhecê-los, Anamaria. Mas tenho mesmo que ir. Estou esperando por um amigo.

_ Bom! Não queremos prendê-lo, mas tome o café da tarde conosco.

Ela serviu o café ali mesmo na mesinha tosca sob a mangueira. Dr. Lauro estava mais calado, como se uma nuvem de tristeza começasse a pesar sobre ele. Anamaria tentava reanimá-lo.

_ Seria bom se Alberto pudesse ficar. Não é, Môzinho? Lauro Júnior iria gostar de conhecê-lo.

_ Terão outra oportunidade, Mô.

_ Quem sabe? Aquiesceu Alberto já com vontade de escapar dali.

Intimamente não se sentia atraído pela idéia de ainda estar ali quando chegassem. Tratou de engolir meio às pressas o café preto e despedir-se.

_ Deixe que o Môzinho te leve de carro até a BR.

_ Obrigado! Mas eu adoraria caminhar um pouco.

_ Nesse caso eu te acompanho até a cancela. Disse Anamaria. Deite-se outra vez na rede, Môzinho. Vou acompanhar nosso hóspede até o portão, não me demoro.

O velho apanhou a garrafa de aguardente que ficara quase cheia sobre a mesa. Serviu-se de uma dose generosa. Arrolhou-a caprichosamente com o restante e entregou-a a Alberto:

_ Pra você comemorar com seu amigo o reencontro.

_ Obrigado, Dr. Lauro. Disse apertando a mão do velho. Obrigado por tudo.

_ Passe por aqui com sua esposa quando vencerem os cem dias.

_ Passaremos com certeza.

Anamaria o acompanhou. Tolstoi, que estivera dormindo desde que voltara da pescaria com o dono, certamente esgotado pela aventura beira rio, os acompanhou em silêncio. A idosa caminhava ainda com desenvoltura e estava obviamente com necessidade de conversar:

_ Sabe, rapaz? O Môzinho não está bem de saúde.

_ Não é o que parece.

_ Está desenganado pelos médicos. Não quer se tratar. Diz que é prolongar o sofrimento. Diz que quer passar seus últimos dias fazendo as coisas que mais gosta. Por isso nos mudamos para cá. Era seu sonho antigo. Agora passa seus dias bebendo, e fumando. Às vezes vai pescar, às vezes entra para a sua biblioteca e passa horas na companhia de seus velhos livros ou ouvindo Strauss nos seus discos de vinil e chora muito. Quando recebe a visita de um de seus velhos conhecidos da capital ou encontra um novo amigo, como foi no seu caso, fala, fala, fala sem parar. Sintomas da depressão, eu acho.

Ela calou-se de repente. Alberto não sabia o que dizer. Não tinha a menor vocação para conselheiro espiritual, ou para psicólogo. Não havia nada que pudesse dizer a ela, a não ser que, se estivesse no lugar do velho certamente estaria se comportando da mesma forma que ele. O silêncio tornou-se pesado demais. Ela esperava uma palavra sua. _Que diabo! De novo aquela sensação esquisita. Por que tinha que se preocupar com desconhecidos daquela forma? Por fim falou:

_ Você está agindo certo com relação a isso.

Ela fitou-o entre surpresa e agradecida. Muda, esperava uma palavra a mais.

_ Continue amando-o com o mesmo amor com que a vi amá-lo hoje e agirá corretamente. O amor tem sempre razão. _ Que merda é essa que eu estou falando? Pensou.

Haviam chegado ao portão, ela o abriu o suficiente para que Alberto passasse. Tinha os olhos molhados e seu triste sorriso exprimia gratidão. Tomou a mão estendida novamente entre as suas e segurou-a calorosamente por alguns segundos. Depois a beijou

_ Obrigada!

Alberto virou-se em silêncio e seguiu pelo caminho de terra batida sem olhar para trás. Tão logo alcançou a curva que contornava a capoeira e se viu longe do olhar da idosa apanhou a garrafa de cachaça que Sabonete lhe dera, havia ainda uns dois dedos no fundo. Bebeu no gargalo até a última gota. Estava precisando daquilo.

Vida de anjo não é nada fácil.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/05/2012
Reeditado em 18/10/2013
Código do texto: T3673996
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