" O ENTERRO DA CACHORRA "

Já eram quase sete horas quando tião chegou em casa, encostou o carrinho improvisado feito de uma geladeira velha bem perto da janela para que os moleques da rua não roubassem suas latinhas.

Entrou no pequeno barraco de dois cômodos em silêncio, e viu o pequeno Bernardo dormindo em seu berço improvisado feito de uma caixa de laranjas que encontrara lá pelos lados do centro.

Na cozinha, Isabela o recebe com olhar de soslaio e cara amarrada.

- Que foi mulhé, que cara é essa ?

- Tú não viu não lá fora ?

- Viu o quê, desembucha logo !

- A cachorra home, a cachorra morreu !

Tião volta ao quintal e se depara com o animal enrolado em um lençol encardido, uma mortalha mambembe que não lhe cobre nem a metade do corpo magro e judiado.

- Morreu quando ?

- Faz umas duas horas, quando vi já tava ai dura e esturricada.

- E Thiago ?

- Sabe não, foi jogá bola no campinho.

- E vamo fazê o quê ?

- Sei lá Tião, gente nóis enterra, cachorro a gente joga fora, enterra num canto e pronto.

Tião olha para o animal, mas o pensamento fixo em Thiago, filho de onze anos, a mesma idade da cachorra, praticamente dois irmãos se não fosse as quatro patas da cachorra.

- Vô fazê um buraco no terreiro.

- Não ! aqui não, Thiago deve di tá voltano, se vê um troço desse passa até mal.

-Tá bom mulhé, oh diacho ! até morta dá trabalho, peste !

- Pára de praguejá home, tú sabia que ela tava doente, num quis leva a bicha no home dos animal.

- E tú acha que ele ia cuida dela de graça é ? Essas coisa custa caro e nóis não tem dinheiro nem pra cuidá da gente mesmo.

Tião pega o carrinho de latinhas que agora servirá de veículo funerário, afasta as latinhas para um lado e coloca o corpo da cachorra que parece mais pesado agora.

- Volto logo, se o Thiago perguntá, diz que a cachorra foi comigo.

E saiu pela ladeira esburacada,arrastando as rodas que teimavam em ficar presas no barro ressecado, as latinhas sendo movidas de um lado para o outro.

Enquanto caminha sem rumo definido,Tião fala sozinho e com o animal sem vida :

Oh vida essa meu Deus, tú é quem tem sorte cachorra porque não precisa mais se preocupá se tem comida, se tem água, se tem onde dormi.. . .

Sabe cachorra, as veis eu fico pensando que é melhor sê bicho que sê gente, gente não se preocupa com os outro, se tá com fome, se tá triste.

Tú se preocupava com meu Thiago, brincava com ele, tomava de conta dele, não deixava ninguém relá as mão nele.

Tu pensa que eu não via o teu carinho com meu Thiago, via sim.

Mas agora cachorra, eu nem sei o que fazer com você, não sei onde vou colocar teu corpo pra mode o meu menino não sofrer por causa de tú.

Tú deve di sabê que se eu pudesse eu te enterrava igual alguém da familia, mas você sabe melhor que ninguém a situação di nóis, teve dia que não teve nem pra nóis, quanto mais pra tú.. . .

Após quase uma hora de caminhada Tião passou num descampado cheio de entulho e resolveu que ali seria o fim da linha para a cachorra, juntou alguns pedaços de madeira e colocou fogo, jogando o corpo do animal na chama em progressão.

Afastou-se e ficou observando a fumaça que subia de encontro ao céu cinzento.

Depois saiu em passos apressados sem ao menos olhar para trás, na esperança de não conseguir lembrar mais onde estivera.

Quando Thiago escutou o barulho do portão, saiu de encontro ao pai.

- Oi pai, cadê a cachorra ?

- Oi filho, ficou pra trás, sabe como ela é né, fuça tudo por ai. . .

Isabela está com o bebê no cólo, o olhar dela pergunta e o dele responde.

- Vou pôr a janta.

- Vou tomá um banho.

Depois do banho, Tião senta na mesa em frente ao filho que distraido, come uma asa de frango, a boca toda melada de molho de tomate.

- Pai.

- Oi filho.

- Acho que a cachorra chegou, escutei um barulho.

- Também escutei filho, agora vê se come.

E disfarçadamente enxugou uma lágrima com a manga da camisa. . .