Nada acontece por acaso... (II)

Uma típica garoa paulistana embaça o parabrisa do velho Fiat 147, dificulta a visão de Horácio, que, cauteloso e apreensivo, tenta localizar o número 2025 da engarrafada e caótica via pública.

Ainda assim, modernos outdoors cinematográficos, relógios digitais, e uma inesperada profusão de devaneios futuristas fazem com que Horácio, por breves segundos, desvie a atenção do seu principal propósito. Quando dá por si, Horácio já vai bem pra lá do número 2900.

“Puxa a vida. Que mancada!”, lamenta-se Horácio pela pontual desatenção que o acometera. Pelo retrovisor, Horácio, vê, agora, o seu destino ficar cada vez mais distante...Tarde demais, Horácio.

Horácio precisava encontrar um retorno, driblar ruas sem saída, obras na pista e placas de contramão. Mas, como não há caos que sempre dure, nem plenitude que nunca termine, ainda que, com alguns minutos de atraso, Horácio, finalmente, chega ao número 2025.

Era um edifício alto, tão alto que se perdia no céu da fria e nublada manhã de outono.

(...) Que sorte!!! A única vaga disponível parecia estar ali à sua espera. Horácio estaciona, e, apressado, equilibrando-se em pastas, papéis timbrados e cartões de visitas, deixa o automóvel, aproxima-se da pequena rampa que dá acesso ao hall de entrada, clareia a garganta e identifica-se na portaria:

“Bom dia, senhor. Meu nome é Horácio dos Prazeres. Tenho um exame médico agendado”.

O porteiro, então, por alguns breves segundos, desvia a atenção da pequena televisão em branco e preto, que, naquele momento, entre uma e outra notícia local, exibe os gols da rodada do último fim de semana. Em seguida, ele anota o RG de Horácio, passa-lhe um crachá de visitante, e, sem meias palavras, indica: “Primeira entrada à esquerda.”

Horácio não consegue esconder um certo ar de satisfação e alívio por ter chegado a tempo. Respira fundo e caminha em direção a uma longa e tortuosa escada. Mas eram tantos os degraus a serem vencidos que Horácio logo opta pela providencial e mais que bem vinda solidão do elevador.

Enquanto subia aos céus, Horácio ajeitava a gola do velho casaco de linho, sacudia todo o pó que via e o que não via, idealizava interlocutores e ensaiava breves saudações. De repente, a porta abre-se e pronto. Horácio já está nas alturas.

Hosana!!! Hosana!!! Horácío nas alturas!!!

Vencido por uma inesperada e repentina curiosidade, Horácio aproxima-se da janela. Afinal, fazia anos que não se via tão próximo das nuvens. Talvez até pudesse tocá-las com a ponta dos dedos, mas uma antiga fobia dos tempos de infância faz com que Horácio recue, dê um passo atrás, e, cauteloso, observe de longe o mar de prédios à sua volta.

Lá embaixo, indiferente a tudo, a cidade segue na sua alucinante rotina. Modernos guarda-chuvas abalroavam-se, chegavam mesmo a enroscarem-se, e a pintarem de múltiplas cores o cinza da manhã. Horácio desvia o olhar, volta-se novamente para o silêncio das paredes do 23º. andar, e, de relance, quase sem querer, depara-se com uma discreta placa de acrílico que, com todas as letras anuncia:

CSO – CLÍNICA DE SAÚDE OCUPACIONAL

(...) “Deve ser aqui. Só pode ser aqui...”

Horácio fala consigo mesmo, confere o número e todos os dados que havia no pequeno papel de memorando, respira fundo, e, com o pé direito à frente, adentra o recinto. Protocolar, como era do seu feitio, Horácio deseja Bom Dia a todos, e, ato contínuo, dirige-se à recepção.

Nem bem Horácio chegara à mesa empilhada de papéis e toda a sorte de fios e cabos telefônicos, a recepcionista, elegantemente trajada em um tailleur azul da cor do céu de Caraguá, antecipa-se:

“Pois, não. Em que posso ajudá-lo, senhor ?”

“Bom dia. Meu nome é Horácio dos Prazeres. Sou o novo colaborador da empresa FVM Alquimia S/A(*), e entrega-lhe a respectiva guia de encaminhamento.

“E o Sr. trouxe a declaração de risco funcional?”

“Como assim, risco funcional? O único papel que me deram foi este termo de solicitação de exame, mas, posso lhe garantir que não há perigo algum na função que exercerei.”

“Sem a declaração de risco funcional, nada feito, não poderemos realizar o exame...”

“E o que devo fazer?”, Horácio questiona a jovem recepcionista.

“Eu vou ligar para a empresa. Enquanto isso, o senhor deverá dirigir-se à sala ao lado e aguardar o envio da declaração de risco funcional.”

Embora tentasse demonstrar o costumeiro fair-play, estava na cara que Horácio sentira o golpe... Mesmo assim, até com os dedos dos pés, Horácio fazia figas para que tudo acabasse bem, como naqueles antigos enlatados da sessão da tarde, em que, para alegria dos pequenos telespectadores, o bem sempre vencia o mal e tudo, absolutamente tudo, acabava em sonoras e demoradas gargalhadas...

Já acomodado em uma confortável poltrona de vime, linho e juta, Horácio olha ao redor, procura algo que o distraia, que abrevie o tempo de espera. Folheia algumas revistas espalhadas sobre a mesa, mas apenas letras desconexas e indecifráveis manchas coloridas passam diante dos seus olhos. Depois de aproximadamente vinte minutos, Horácio veste-se de coragem, levanta-se, e, cauteloso, cuidando para não ferir suscetibilidades, dirige-se novamente à jovem encarregada pela recepção:

“Desculpe-me se pareço impaciente, ou, até mesmo impertinente, mas será que ainda vai demorar muito!?”

“Tanto pode demorar dois minutos, como duas horas”, responde a recepcionista, sem conseguir esconder um quê de contrariedade...

“Ah! Que bom seria se você fosse apenas otimista”, observa Horácio com o firme propósito de descontrair.

“E o senhor quer que eu minta?”

“Não, não, claro que não. De jeito algum. Mentir... nem pensar.”

Horácio logo sentiu que não fora feliz na brincadeira. Chegou até a suspeitar de estar a moça naqueles dias que só as mulheres entendem, e, muitas vezes, nem mesmo elas conseguem compreender...

Finalmente, o bom senso parece prevalecer. Horácio será examinado, ficando a expedição do atestado, condicionada à apresentação da tal declaração de risco funcional. Em poucos minutos, o nome de Horácio ecoa pela recepção. Ele, então, levanta-se, e, apreensivo, caminha até a sala de exames. Uma jovem médica o aguarda.

Horácio tenta descontrair fazendo comentários sobre a imprevisibilidade do clima na cidade de São Paulo, mas, logo percebe ser a doutora de poucas palavras. Ela aproxima-se de Horácio, pede-lhe que desabotoe a camisa, e, com o estetoscópio em punho, ausculta-lhe os batimentos cardíacos, depois mede-lhe a pulsação, e, por último, a pressão arterial.

A doutora, no entanto, não consegue conter a curiosidade com o inusitado cargo de Horácio:

“O que vem a ser um Mentor da Alegria e da Magia Organizacional?”

“Também não sei ao certo, doutora, mas posso lhe garantir que não correrei risco algum. Como o próprio nome já diz, só terei de contribuir para que haja bom humor e descontração no local de trabalho..”

“E Quanto à Magia Organizacional?”, indagou-o novamente a doutora.

“Bem, a magia organizacional baseia-se em uma sequência lógica de pensamentos positivos, ideias promissoras, devaneios, abstracionismos e fantasias... Imagine, doutora, a linha de montagem de uma fábrica de sonhos. É isso, ou, então, algo muito parecido.

Nem bem Horácio acabara de falar, a doutora anuncia: “A sua pressão, Sr. Horácio, está 17X10. O senhor terá de consultar um cardiologista.”

Horácio, que se reconhecia movido a emoção, ainda tenta argumentar:

“Sabe doutora... Confesso que estou um tanto ansioso. Afinal, faz sete anos que vivo na informalidade, além do quê, também fiquei um pouco tenso por não ter em mãos a tal declaração de risco funcional, mas conheço bem o meu organismo, os meus limites, e tenho certeza de que logo, logo, estarei 12, ou, quando muito, 13X8, no máximo, no máximo, 14X9...” E, em um último recurso, Horácio lança o argumento final,

Horácio lembrara-se de que certa feita, ao assistir à entrevista de um renomado cardiologista, ouvira falar da “síndrome do avental branco.”

“Quem sabe, doutora, seja a tal síndrome do avental branco.”

Irredutível, a médica faz ouvidos moucos às ponderações de Horácio, e condiciona a expedição do atestado, à apresentação da tal avaliação cardiológica.

Horácio, agora, via-se diante de dois problemas; continuava desempregado e descobrira-se um virtual cardiopata.

Decide voltar para casa, e... tal qual o pastor Jacó, que, por sete anos esperara pela bela Raquel, Horácio também aguardaria, quem sabe, outros tantos anos, na esperança de que um dia, até por engano, a felicidade viesse bater à sua porta...

“Mas isso não é justo... Uma coisa é literatura, a outra é vida real”, ponderava Horácio, que, aos 52 anos de idade, via escapar, quem sabe, a derradeira oportunidade de um emprego formal...

Já era meio-dia e meia daquela acinzentada quarta-feira de maio. Resignado, Horácio senta-se à mesa a mastigar pensamentos, a beber ilusões e a engolir incertezas...

“É porque tinha de ser assim... Nada acontece por acaso. Tudo bem. Tudo bem. No fundo, no fundo, também é feliz quem dispõe de tempo para pensar e escrever...”

Nesse exato momento, o telefone toca. Toca uma, toca duas, toca três vezes. Horácio, então levanta-se, antecipa-se à costumeira frigidez da secretária eletrônica e, antes do quarto toque, retira o telefone do gancho.

Um breve silêncio deixa no ar um misto de perplexidade, apreensão e esperança. Mas logo, Horácio parece transformar-se.

(...) Algo teria acontecido que deixara Horácio mais descontraído, mais de bem com a vida, mais em paz consigo mesmo.

Era o Herculano Montealegre, diretor de RH e Qualidade de Vida da FVM Alquimia S/A, que lhe trouxera a boa nova. Horácio passaria por uma nova avaliação médica.

(...) “Quem sabe desta vez, não fará um belo dia de sol...” especulava Horácio, que, entre algumas de suas máximas, costumava dizer que ... “até mesmo os tolos preferem os dias ensolarados...”

Horácio ouve a porta da sala abrir-se. Pelo horário, só podia ser Eulália... Ele então corre escada abaixo para lhe contar a novidade.

“Acabaram de me ligar, Eulália. Agendaram outro exame. Acho que desta vez eu vou passar.”

“Que bom, Horácio!!! Que bom !!! E, quando chegar a hora, vou preparar um chá de melissa bem forte pra você se acalmar. Eu não lhe falei, Horácio !? Deus jamais abandona os seus filhos.”

(...) “Que tal um vinho para comemorar!?”, sugere Horácio.

“Boa idéia. Eu vou pegar as taças. Vamos fazer um brinde à esperança, Horácio”

“E ás nossas pequenas alegrias, Eulália.”

A tarde caía sem pressa. A cidade já não era a mesma. A intermitente garoa da manhã, dera lugar a um distante e pictórico pôr-do-sol. Como numa tela pós-impressionista, uma tímida lua quarto crescente assinalava uma breve pausa na infinda quietude do céu...

FIM

(*) FVM Faça Você Mesmo.

Conto de Zizifraga

Reeditado em maio de 2012.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 29/05/2012
Reeditado em 29/05/2012
Código do texto: T3694493
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