Parte I

Escutei alguém batendo na porta, mas não dei atenção. Bateu mais forte. Já passavam das três horas da manhã e eu estava a caminho da cama com o meu short largo e uma camiseta de alguma dessas empresas que se vê por aí.

- Quem é?

Não respondeu. Procurei a chave no meio da bagunça em que se encontrava minha mesa de trabalho.

- Já vai!

Sempre discuti comigo mesma a falta que um olho-mágico faz nessas horas, mas nesse exato momento eu nem lembrei desse incômodo, só pensei nos minutos preciosos de sono que estava perdendo, maldizendo o inconveniente.

Encontrei a chave embaixo de um livro da Claudia Tajes que eu começara a ler naquele dia. Girei e forcei a maçaneta para baixo, abrindo a porta apenas uns três dedos.

- Oi!

A pessoa parada na minha porta me parecia familiar, mas meus olhos estavam embaçados de sono, dificultando o reconhecimento.

- Posso entrar?

- O que te deu pra aparecer aqui essa hora? Trabalho cedo amanhã, sabia?

Ele não respondeu mais uma vez e não se fez de rogado ao entrar sem o meu consentimento.

- Sua casa tem o seu jeito. Qual é mesmo o nome desse cara..? - apontando pro quadro da sala.

Sempre detestei muitos quadros pendurados pelas paredes da casa. Precisa existir um espaço de tempo, um diálogo entre o artista e o espectador, e a poluição visual prejudica esse momento de interação entre os dois.

- Andy.. Warhol. Quer água? É a única coisa que eu tenho na geladeira. E se não tiver.. - eu não conseguia achar a garrafa - bom, deve ter na torneira.

- Não, estava no bar até agora.

- A-há! Então parece que esse é o motivo da aparição repentina. Bêbado?

- Eu não bebo muito. Não passei dos 10 copos de cerveja.

- É, não é muito mesmo, né?

Nós sempre caíamos no jogo de ironias. Muitas vezes, isso atrapalhava nossas conversas, pois em certo ponto o assunto se perdia nas intenções que imaginávamos estarem escondidas por trás de cada frase e então, o inevitável silêncio mortal.

- ...

- Você vive reclamando que não te dou atenção, que não venho te ver e agora que estou aqui você não fala nada.

- E não é verdade? Você espera que eu te convide pra dormir comigo? Você tem suas próprias pernas, se quiser, vá pra minha cama por conta própria.

Ele se levantou, ameaçando ir em direção ao quarto, mas ele nunca havia estado ali e obviamente não sabia onde ficava.

- Qual das três?

- Aquela ali atrás. - eu disse, apontando para a porta pela qual ele havia entrado.

- Quer que eu vá embora?

- Eu nunca quero. Mas uma hora você vai, não depende da minha vontade.

- Mas eu volto..

- Quando você quer.

- Volto mesmo assim.

- E eu fico esperando, enquanto você está na casa dela.

- Dela quem?

- Dela quem? Também não sei.

Deitei no sofá e coloquei o braço sobre a testa. Ele sentou no outro e me encarou, medindo os centímetros ou pensando em um jeito menos complicado de me tirar de dentro daquela roupa.

- Sabe o que me deixa maluca sobre você? Você tem esse jeito, como se fossem dois lados da mesma moeda...

- Hm?

- Acho que de um lado, tem esse menino tentando provar pras pessoas do que ele é capaz, aonde ele pode chegar, escondido nesse lugar que ele criou, onde as coisas funcionam exatamente do jeito que ele quer. Do outro, tem esse homem que deita na cama e antes de dormir fica olhando pro teto e confessando, em voz alta, como se tivesse conversando com o reflexo no espelho, os sentimentos, os medos, as vontades que não quer que ninguém descubra... entende?

- Será que essa não é só você tentando acreditar que eu falo sobre nós nas minhas confissões?

- Pode ser.

Me virei, ficando de costas para ele. Uma lágrima estava prestes a escapar dos meus olhos e a última coisa que eu queria era que ele me visse chorar. Ele se aproximou, sem dizer nada, e me abraçou.

Fernanda Galhardo
Enviado por Fernanda Galhardo em 07/02/2007
Reeditado em 07/02/2007
Código do texto: T372278