Abro as Janelas

Ah... O ar!

Abro as janelas e vejo, com olhos que fitam alguma coisa indefinida, que se define por essa concepção do que sinto existir. O devir que se faz e me faz e desfaz e não se satisfaz. As pálpebras tentam ser persianas sutis, que mal conseguem encobrir a claridade que inunda estes globos vítreos, que refletem feito faróis que não guiam nenhuma embarcação aparente. Seguem adiante. Percorrendo o que é possível alcançar, mesmo que canse sem conseguir ao menos tocar. Movendo-se parado, a ponto de tornar a gravidade tão tênue, que uma leve brisa de lágrima varre qualquer paisagem como amedrontador tsunami. Sons de fogos são a trilha sonora do momento, pois os rojões incansáveis gritam para afrontar o silêncio.

O gado pastando bem de mansinho, com a lembrança do sereno que ontem veio freqüente e fininho. Tantas trancas molhadas, emperradas, que as chaves mal conseguiam girar, algumas com a infelicidade de quebrar. Cães adornados de moletom, desfilando com modelitos variados. Alguns apenas com a vestimenta natural, o pelo embaraçado que não fazem questão em escovar. Enquanto a cantoria felina parece uma espécie de fado. Bichos indiferentes a outros tantos bichos que os cativam e domesticam. O trânsito de pedestres compete com o tráfego de veículos particulares e públicos. Coletivos abarrotados, ou mesmo vazio, em um balançar que com o rio da água da chuva a tentar escoar, parece um barco a velejar em mar agitado.

Uniformes escolares dão alguma ideia de agrupamento, embora os perfis sejam bem singulares, com gestos exagerados ou tímidos, atuando no espetáculo do dia-a-dia. Mulheres com sacos plásticos, os dedos entrelaçam as alças, que fazem o embrulho balançar, enforcando as falanges. Risadas altas que ecoam e se misturam aos latidos aflitos de cães em perseguição ao carro do lixo. A folha cai da árvore, juntando-se ao maço de cigarros vazio, somados a uma sobra de papelão. Talvez uma caixa. Quem sabe a satisfação de um tabagista. Provavelmente mudança de estação climática. A beleza da vida está na soma de coisas aparentemente inusitadas.

Um vento assopra os cabelos da mulher que segura a saia do vestido, deixando desnuda a nuca que se insinua. Equilibrando-se com um salto elegante diante do terreno irregular, majestosa feminilidade que faz da vaidade uma atraente paisagem. Pescoços duros que se quebram para apreciar o movimento das curvas do corpo que requebra no andar que faz estremecer os quadris, com rosto sério e expressão firme, ignorando os comentários cerebrais que tendem a escapulir da mente, virando algum gracejo pouco eloqüente. Fazendo a imaginação aflorar, desejando por baixo das vestes perscrutar, satisfazendo a libido com uma mera alça de sutiã. A própria pelada de futebol se interrompe, ou segue com distração declarada.

Na hora que o assovio espantou o pássaro que piava. No instante em que a roda transbordava a poça, que molhava a moça, que corria louca, atrás da condução que se movia distante, com um menino de face colada no vidro traseiro, vendo o desespero da mulher, sem dar um pio sequer, para alguém avisar. Um motoqueiro passava, deixando rastro de água. O frio causava arrepio, que o digam aqueles pobres mendigos, deitados no solo quase vazio, tendo como consolo o cãozinho amigo, que late contido, por estar castigado por pancadas de desconhecidos. E o sujeito chora, pensando que a chuva é o lamento da natureza que se condói com seu sofrimento, ignorando que o mundo tem mais sofridos do que o seu egoísmo, e que se o clima fosse sentimental as dores de todos, não teríamos dias de sol a contemplar de novo.