Como em uma película de Frederico (*)...
Espremem-se no estreito corredor sem lei, desviam olhares, miram pontos equidistantes e vazios, misturam destinos, desatinos, odores, desilusões e esperanças...
Lá fora, anônimos pedestres correm de um lado para o outro, atravessam ruas, passarelas, praças e viadutos, sobem e descem “preguiçosas” e escorregadias ladeiras de paralelepípedos...
Pouco a pouco, a cidade vai retomando os mesmos desvarios de ontem e de anteontem. Alheia a tudo e a todos, sem pressa alguma, a nave sobre rodas segue o seu caminho...
O próximo ponto é logo ali. A porta abre-se... entra uma menina de cabelos longos e úmidos, mistérios juvenis e alpargatas azuis...
“Um passinho à frente, por favor...”
Agradecido por cada centímetro conquistado, o homem de terno e gravata pede licença e, equilibrando-se em jornais sensacionalistas, pastas, papéis e timbres oficiais vai passando, passando, esbarrando em mochilas adolescentes, sacos plásticos, geladeiras de isopor e bolsas de vime e courvin ....
No colo da mãe, o menino aponta para o voo sereno e solitário do majestoso pássaro prateado...
Para além das janelas, havia um céu; ora cinza azulado, ora azul acinzentado...
A moça de óculos escuros, echarpe preta e tailleur caramelo apóia o espelho na palma da mão, retoca a maquiagem, vê o tempo passar; levanta-se, dá sinal.
Já em terra firme, ela equilibra-se em saltos Luiz XV, vira à direita, e, sem olhar para trás, deixa-se levar por uma multidão de afoitos e apressados guarda-chuvas coloridos ...
Já desceram quase todos; a senhora de lenço na cabeça, o policial militar, a gestante, os estudantes, o guarda civil, o bilheteiro, a mãe, o menino, o bombeiro e o carteiro...
“Vai descer... Vai descer...”
(...) Quem seria agora. (...) Quem seria.
Era a menina das alpargatas azuis... Ela então desce, caminha pela calçada, atravessa a rua, e, driblando uma poça aqui, outra ali, segue adiante, até desaparecer da paisagem do vidro traseiro...
Não há mais ninguém a bordo, exceto o motorista a fazer manobras junto ao meio-fio, e o cobrador a bocejar, a contar passes e dinheiros, a pensar na vida...
Uma pequena fila já se formara no ponto inicial.
A nave sobre rodas, agora, anuncia o “Paraíso” como próximo destino.
Com o motor em marcha lenta, um a um, outros passageiros adentram o coletivo, acomodam-se, aguardam a partida. As portas fecham-se. Pelo espelho retrovisor, o motorista acena para o cobrador, pisa na embreagem, engata a primeira marcha.
Alguém bate à porta. Com a mão esquerda, ele aciona uma pequena alavanca. A porta abre-se.
“Obrigada, muito obrigada.” Agradecida pelo pontual e inesperado gesto de solidariedade a jovem senhora sobe degrau por degrau, senta-se no primeiro banco livre à sua frente.
Como em uma antiga película de Frederico, garimpando preciosos espaços pelas estreitas e congestionadas ruas do centro antigo, a nave sobre rodas; ora rangendo, ora batendo lata, afasta-se lentamente do ponto inicial, e parte para a derradeira viagem daquela inefável manhã de outono...
Ao longe, tímidas aberturas de sol aquecem o dia, animam a paisagem, projetam anônimas sombras no insensível concreto da cidade...
Fim.
Conto de Zizifraga
Julho de 2012.
Nota:
(*) Frederico Fellini (Itália 1920-1993) Um dos maiores nomes da cinedramaturgia mundial. Entre suas obras destacam-se, A doce Vida, Cidade das Mulheres, Amarcord, Julieta dos Espíritos.