O JÚRI E O MENDIGO

Depois de três horas de viagem Francisco se alegrou com a placa de boas vindas na entrada da pequena cidade do interior nordestino. Absorto no processo não notara a vegetação seca, os umbuzeiros floridos, o céu tingido de vermelho pelos últimos raios do sol. Vou precisar mesmo de muita sorte para ver a justiça triunfar nesse caso, pensou enquanto tentava se lembrar do nome da pousada que contratara pela internet.

Ele não compreendia como os dois acusados daquele crime tinham sidos absolvidos pelo Tribunal do Júri. O Promotor recorreu da sentença. Agora era ele quem fora nomeado para representar o Estado na aplicação da lei naquele segundo julgamento.

Um crime bárbaro perpetrado por dois jovens, matando a pauladas um homem que estava dormindo na praça principal da cidade.

Não pôde deixar de fazer uma comparação com o assassinato do índio Galdino em Brasília. A sentença da juíza absolvendo aqueles rapazes fora tecnicamente perfeita, porém completamente absurda. Os quatro rapazes foram enquadrados como transgressores, não tiveram a intenção de matar. Como? Compraram a gasolina, anteciparam o fato. Quem ateia fogo em alguém assume o risco de lesionar fatalmente o sujeito passivo.

Deixá-los livres só podia dar naquilo.

Os autos do processo mostravam claramente a intenção dos réus de matar o pobre homem. Confessaram com frieza e riqueza de detalhes, as testemunhas confirmaram que o homem estava dormindo quando eles começaram a espancar o mendigo até a morte.

No dia seguinte o plenário do júri estava lotado. O promotor deduziu que os acusados deveriam ser gente importante. Mesmo assim ele resolveu perguntar a um oficial de justiça:

—Porque o plenário está tão lotado?

—Um dos acusados é filho do Doutor Plácido, o outro é filho do fazendeiro mais rico daqui, o Major Lopes, tudo gente grande, enfatizou o auxiliar da justiça.

— E a vítima?

—Era um pobre diabo que morava na rua.

Ali estava o motivo da absolvição no primeiro julgamento. O júri fora constrangido pela condição social das partes envolvidas. Como sempre os poderosos acabam ganhando da justiça. Mas tenho que fazer a minha parte.

Às duas horas da tarde o juiz declarou o início dos trabalhos. Após uma demorada leitura dos autos chegou a vez de Francisco cumprir a sua obrigação de fiscal da lei representando o Estado. Caminhou firme para o local com o processo nas mãos tentando encarar o olhar dos jurados, mas estes se limitavam a fitar o chão, o teto, o público, até mesmo o juiz. O promotor provou com fortes argumentos a execução bárbara; a disposição dos réus; a impossibilidade de defesa da vítima, mas cada vez mais se convencia que estava falando em vão. Não chegou a usar o tempo processual de três horas. A defesa foi chamada. O advogado mais velho começou a sua argumentação:

“Excelentíssimo Sr Dr. Juiz desta Vara Criminal, Excelentíssimo Dr. Promotor de Justiça, colegas de trabalho, senhores do júri, estamos aqui reunidos debaixo desse calor nordestino para decidir o destino de dois jovens. Na verdade, vos senhores jurados, é que vão decidir, concordando com o jurado anterior que absolveu estes dois rapazes ou contrariar a sentença e condená-los. Não podemos negar que houve um crime, não podemos encobrir a verdade. No entanto não existe em nenhuma parte do processo algo que prove a autoria do crime por parte dos réus. Vocês podem analisar o volume do inquérito feito pelo delegado. Nenhuma testemunha afirmou ter visto o homem ser morto por eles. O teste de DNA do sangue encontrado nas roupas dos réus confirma que era do morto, mas repare bem, o mendigo estava embriagado e caiu batendo com a cabeça no calçamento. (Risadas). Os meninos, gente boa que são, levantaram-no e colocaram-no sobre o banco da praça. Claro que sujaram a roupa de sangue. Os dois correram e foram buscar uma viatura para levar o mendigo para uma clínica. Nessa ocasião, alguém se aproveitou e atacou o velho. Vocês acham que este alguém tinha raiva dos meninos ou do velho embriagado que vivia atanazando as vidas das pessoas? Vou lhes contar uma presepada que esse bêbado fez outro dia.

Dali por diante o advogado emendou uma piada atrás de outra. Os jurados e o público riam cinicamente. Diante do protesto do juiz ou do promotor a defesa voltava a denegrir a vítima e enaltecer o caráter dos réus, pedindo afinal a absolvição por negativa da autoria.

Diante da situação, Francisco se perguntava se valia à pena lutar pela Justiça numa sociedade contaminada pela hipocrisia e pela insensatez. Os jurados estampavam no rosto a preferência pelos argumentos dos advogados, exibindo todos eles um riso cínico, um olhar cúmplice.

O juiz, após a atuação da defesa, perguntou?

—V. Exª deseja ir à réplica?

O promotor respirou fundo. Deveria desistir? Já tinha falado tudo. Dessa vez os jurados tinham o olhar sobre ele, como felinos esperando a presa sucumbir ante as garras do poder do mais forte. Mesmo sentindo as pernas fraquejar ele se ergueu.

— Preciso ir Exª... Preciso ir...

Assim que começou a falar a atenção de todos se voltou para a porta de entrada do fórum. Dois soldados seguravam um senhor que suplicava desesperadamente:

—Deixe-me entrar, ele era meu amigo!

Gritava um mendigo agarrado pelos soldados.

—O que está acontecendo ai? Perguntou o magistrado.

—Excelência, esse homem insiste em entrar, mas não tem condição, está muito sujo, respondeu o militar.

O mendigo apontou para a parede e falou com forte convicção:

—Ali está escrito que é proibido entrar de bermuda ou sem camisa, seu Juiz. Eu estou de calça e camisa, não podem me impedir de assistir o julgamento dos que mataram o meu amigo!

O Promotor olhou para o Juiz e falou em voz baixa:

—Ele tem razão, a audiência é pública, deixe-me falar com ele.

O juiz acenou com a cabeça. Enquanto caminhava em direção do mendigo, Francisco vislumbrou uma luz no fim do túnel. Quem sabe isso possa alterar a situação. O homem era um negro de meia idade, sem dentes, as vestes maltrapilhas. Assim que o promotor chegou perto ele explicou:

— Doutor, o senhor me desculpe, mas só tenho essa roupa!

— Tudo bem. O senhor é parente da vítima?

— Mais do que parente, doutor! O Chico era meu amigo de verdade.

A coincidência do nome aumentou a emoção do promotor.

— Venha comigo, você é meu convidado. Como é seu nome?

— Nego Véi.

— Quero saber o nome de batismo.

— É José, mas só me chamam Nego Véi.

Francisco colocou o mendigo na primeira fila e voltou para seu local. A presença daquele homem transformara completamente o ambiente. A platéia silenciosa parecia ver os dois amigos abraçados, caminhando pelas ruas da cidade, cada um feliz com a presença do outro. O promotor tinha a voz embargada quando voltou a falar.

— Seu José, nas suas vestes há mais dignidade do que na toga de alguns jurados que daqui a pouco irão cometer uma grande injustiça, absolvendo sem nenhum motivo os matadores de seu amigo. Senhores jurados podeis ignorar as claras evidências existentes nos autos, podeis violar vossas consciências aceitando a imposição de forças mais fortes, podeis até contrariar o próprio Deus, absolvendo estes dois rapazes, mas não podeis negar a beleza de uma amizade nascida nos bastidores da vida. Nem o ato covarde desses dois assassinos conseguiu destruir o verdadeiro amor entre dois mendigos gerados pela própria sociedade. Permitam-me contar uma parábola para encerrar a minha participação nesse julgamento. Em uma das batalhas da segunda guerra mundial um soldado se dirigiu ao seu superior:

—Comandante, meu amigo não voltou do campo de batalha, solicito permissão para ir buscá-lo.

—Permissão negada, respondeu o oficial, não quero que arrisque a sua vida por um homem que provavelmente está morto.

O soldado, ignorando a proibição, saiu e uma hora depois regressou mortalmente ferido, sangrando e agonizando, mas com o cadáver de seu amigo nas costas. O comandante, vendo aquela cena, gritou furioso:

—Imbecil! Não lhe disse que já estava morto? Agora eu perdi dois homens! Valeu à pena ir buscar um morto?

O soldado morrendo respondeu com suas últimas palavras:

—Claro que valeu senhor! Quando o encontrei ele ainda estava vivo e me disse: “Eu sabia que você viria!”

Seu José — continuou o promotor — o seu amigo está em outra dimensão, mas está orgulhoso de você, pois ele tinha certeza que você também viria. Talvez aqui nesse plenário não seja realizada justiça, e os matadores de seu querido amigo possam ser absolvidos novamente, porém nunca se esqueça de uma coisa: se algum dia for surpreendido por uma injustiça, jamais deixe de acreditar na verdade, na honestidade e na dignidade, e sempre enfeite a sua vida cultivando uma bela amizade, pois quem tem um bom amigo tem duas almas.

Duas lágrimas brotaram dos olhos de Seu José.

O promotor parou e respirou fundo. O silêncio era total. Ele então olhou para os jurados e arrematou:

— Eu desejo apenas que Vossas Excelências façam justiça. Votem conforme vossas consciências. Para que o mal prevaleça é suficiente a omissão das pessoas de bem.

Por quatro a três os réus foram condenados.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 15/08/2012
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