Bala Perdida

Um implacável vazio apossou-se dele. Ele implorava a presença do outro, que por um longo tempo fora sua parceira. A junção dos corpos latejando; o toque; a maciez...

O amanhecer é seco e áspero sem o som melodioso daquele bom dia. A preguiça dengosa do amanhecer. O pedido de ainda tá cedo; a cabeça no seu peito; o cheiro dos cachos negros. A companhia perfeita para uma pessoa stressada e bipolar. Somente ela o compreendia.

Ele ainda lembra-se da noite em que o sonho acabou. Por volta das três da manhã ele ouvira o estampido e os estilhaços do vidro caindo. Acordou assustado, mas não se levantou de imediato. Piscou os olhos e esperou. A cabeça dela ainda repousava delicadamente sobre seu peito. Mas havia algo estranho. Ele a chamou. Nenhuma resposta. A sacudiu. Nada! Um gelo glacial invadiu-lhe o corpo instantaneamente.

Foi então que sentiu algo molhado escorrendo do seu corpo. Retirou a cabeça dela lentamente do peito enquanto estremecia. Acendeu a luz. Neste momento o mundo virou de ponta a cabeça. O quarto à sua volta rodopiou violentamente como se fosse um moinho de vento possuído pelo demônio. O chão transformou-se numa lama negra de onde saiam braços ensanguentados que os puxavam para baixo. Sentiu o ar sumir. Piscou os olhos. Mergulhou num mar de sangue...

Acordou sobre uma superfície fria. Estava no chão. Levantou-se. Não fora um sonho. Não existiram passeios no parque; filmes com pipocas cobertas de leite moça; a corrida matinal, a divisão dos ossos de galinha; os olhos amendoados, tão serenos e cúmplices da sua idiotice. Não havia mais retorno.

A bala tinha se alojado no crânio dela, salvando a vida dele. Sua fiel companheira foi sua salvadora. Não era mais possível viver naquela casa sozinho sem sua companheira. Desejou sepultamento. Não economizaria. Mandou fazer uma lápide: “Aqui descansa Valquíria, a companheira insubstituível”.

Ele não conseguiria conviver com outra cadela.