Diziam ser aquele o som da nova era...

A claridade da manhã reflete-se nos rostos de Mateus e Josélia, que, apreensivos, aguardam a chamada que os colocará diante do agente recenseador.

O local é discretamente vigiado por seguranças formalmente trajados. Comunicam-se por meio de minúsculos microfones presos à lapela, todavia, os seus interlocutores ficam apenas no imaginário de Mateus e Josélia, que, num impulso de pura adivinhação, tentam inferir quem, de algum ponto do planeta, falaria na mesma frequência.

Ambos haviam sido previamente informados de que, uma vez concluída a totalização do número de habitantes, as atuais carteiras de identidade seriam substituídas por modernos documentos com sofisticados padrões de inviolabilidade, e os respectivos dados ficariam de vez armazenados no CNI - Centro Nacional de Identificação.

À entrada do edifício, um intermitente luminoso, em letras garrafais digitalizadas, exibe:

Censo Oficial. A pátria que somos nós.

“Veja, Josélia, jamais seremos vítimas de falsificações baratas, presas fáceis dos estelionatários cibernéticos, os tais hackers de quem tanto se fala... Além do quê, Josélia, logo seremos 200 milhões de almas...”

Mateus tentava, de todas as formas, convencer a si e à companheira de que, apesar dos eventuais contratempos, deveriam sentir-se honrados por também serem reconhecidos como milionésimas frações do heróico e generoso povo que habitava aquele imenso território ao sul da linha do Equador..

Tanto Mateus, 38, quanto Josélia, 35, tinham plena consciência de que nada, absolutamente nada, poderia livrá-los daquele emeranhado burocrático. Afinal, viviam em uma aldeia digital, e jamais ousariam desafiar as pragmáticas e eficientes agências nacionais de inteligência.

Vinda, não se sabe de onde, uma melodia suave preenchia o silêncio do imponente arranha-céu... Sintetizadores imitavam o correr sereno dos riachos e o sopro de errantes brisas marítimas..., Não raro, ouvia-se também o eufórico cantar de cigarras e bem-te-vis... Diziam ser aquele o som da nova era...

Ainda assim, Mateus parecia sentir-se desconfortável com a velada vigilância de algumas câmeras, estrategicamente posicionadas em determinados pontos do edifício. Mesmo tomado por estranhas ilações, não fez comentário algum.

Josélia, por sua vez, já considerava a conveniência de dirigir a palavra ao casal que acabara de entrar.

Todavia, antes que ela se manifestasse, ouve-se o tilintar sincronizado de algumas sinetas. Depois outro, a seguir outro, e outro mais. Dali em diante, até o impossível parecia possível. Aquilo soara como um divisor de ares, entre o que até então se respirara e o que ainda estaria por vir.

Em tom de advertência, uma voz masculina sóbria e bem postada interrompe a suave sucessão melódica para informar aos virtuais recenseados que, a partir daquele momento, todos seriam responsabilizados pela veracidade das informações prestadas...

“Veja Mateus. (...) Parece que um poder invisível paira sobre nossas cabeças.

(...) Quem não deve, não teme, Josélia. Não é isso que costumam dizer por aí !?

(...) Você tem razão, querido. Não temos motivo algum para nos preocupar. E tudo isso logo será passado...”

Depois de um breve período de hesitação, já mais senhor de si, Mateus levanta-se, caminha até a porta, e, medindo palavras e gestos, questiona a introspectiva segurança :

“Por favor, senhora, será que ainda vai demorar muito !?

“Talvez sim, talvez não.”

“Lacônica, responde-lhe a senhora segurança, deixando no ar uma indisfarçável sensação de perplexidade e inevitável constrangimento.

(...) Aquela resposta parecia sem sentido e Mateus passa a ver-se coadjuvante de uma película “sem pé nem cabeça”. Refletiu, ponderou, mas, como era de se esperar, nada concluiu.

Mateus sabia que tinha lá os seus motivos para ter agido daquela forma. E o principal era Josélia, que, já a caminho do oitavo mês de gestação revelava certo desconforto, em parte causado pela alta temperatura, bem acima da média para aquela época do ano. Sem alternativas, Mateus curva-se diante das ponderações oficiais e, resignado, volta ao seu lugar. Apoia o braço direito sobre o ombro de Josélia, e comenta:

“É melhor nos acalmarmos, Josélia... a nossa pressa pode tornar o tempo ainda mais lento.”

Em seguida, Mateus dirige-se ao casal à sua frente; ele, um tipo eslavo, barbas e cabelos ruivos; ela, de traços ameríndios, cabelos negros e olhos castanhos amendoados. Aparentavam pouco mais de trinta anos.

“Perdoem-me a curiosidade, mas vocês também receberam a convocação para o Recenseamento?” “Sim, recebemos sim” , responde o rapaz, passando-lhe um formulário com o timbre ministerial em relevo, e completa, “E vocês, faz muito tempo que estão esperando?”

“Faz duas horas e dezessete minutos.” Respondeu prontamente Mateus. E olhando para a janela.... “Bem, agora devem ser onze e trinta e três, não?”

“Impressionante, nunca vi nada igual, tamanha exatidão, como pode alguém ser tão preciso... Parabéns!!! Gostaria, também, de numa simples espiada pela janela, sem depender de relógios, ser capaz de saber as horas e os minutos...”

“Você certamente deve ter outros dons inatos. Mas, qual é o seu nome ?”, emendou Mateus.

“Vaclav, e o dela é Felicidade.”

“Puxa, que nome bonito. Espero que você faça jus ao nome”, já dirigindo a palavra a Felicidade. “Todas as Felicidades deveriam, por força de lei natural, ou, até mesmo cartorial, serem pessoas felizes, vocês não acham?”

“Creio que sim” antecipou-se Vaclav.

E concluiu Mateus... “mas, as Marias, as Fátimas, as Amalias, as Rosas e as Franciscas, também, enfim, não penso que ser feliz, devesse ser um privilégio das Felicidades”.

“Você tem razão, Mateus, mas esqueceu-se de mencionar as Josélias” – observou prontamente Josélia.

“Claro, claro, as Josélias também.” Apressou-se logo Mateus para inserir Josélia na sua breve lista.

“O seu nome também não é muito comum, Vaclav...”, prossegue Mateus.

“Só na República Tcheca. Lá, é um nome bem popular. Já tivemos até um presidente chamado Vaclav.”

“Ah! Então você é estrangeiro?”

“Sou filho de tchecoslovacos. Tenho parentes tanto em Praga(1) como em Bratislava(2). E eu... bem... eu passei alguns anos vagando de um lado para o outro até encontrar o meu velo de ouro”, já apoiando a mão sobre a de Felicidade, que, lisonjeada, deixa escapar um sorriso tímido, mas de satisfação plena.

E prossegue Vaclav, “Será que vai demorar...” e num segundo momento, pondera... “Se bem que a maior lição que nesta vida aprendi, é a de que não se deve lutar contra o eterno senhor da razão ...”

“Sou da mesma opinião, mas devo confessar, que, às vezes, tento, em vão, dominá-lo. E por falar em tempo e razão, vocês têm filhos?” questiona-os Mateus.

“Temos uma menina de dois anos. Foi abandonada em uma caixa de papelão na porta de nossa casa. Chama-se Elizabeth”.

“Puxa, que gesto nobre, admiro-os bastante por isso, Vaclav. Eu não falei que você deveria ter outros dons inatos!? Você sim, Vaclav, é quem, de fato, merece parabéns... (...) Como pode alguém abandonar um ser tão indefeso na soleira de uma porta, em uma caixa de papelão!?”

Nesse exato momento, abre-se a porta da sala de entrevistas. Uma senhora vestindo bata branca e exibindo um crachá onde se lê, “Agente Recenseador”, anuncia os nomes de Mateus e Josélia:

“Sr. Mateus e Sra. Josélia dos Santos Dias, queiram, por favor, dirigirem-se à sala 4.”

“Até que enfim”, sussurra Mateus. E estendendo a mão a Josélia, volta-se para Vaclav e Felicidade.

“Foi um prazer conhecê-los. Espero que vocês também sejam logo chamados”

“Acredito que os próximos sejamos nós” , observa Vaclav.

“Muitas felicidades para o vosso filho”, completa Felicidade, fazendo figas com as duas mãos.

“Boa sorte”, em uníssono, desejam-lhes Vaclav e Felicidade.

“Até um dia, quem sabe...” , completam.

E enquanto Mateus e Josélia, de mãos dadas, caminham em direção à sala 4, a mesma senhora retorna à porta e anuncia:

“Sr. Vaclav e sra. Felicidade Klatovy, queiram, por favor, apresentarem-se à sala 5”

“Obrigado senhora”. “Chegou a nossa vez, Felicidade.”

“Até que não demorou tanto assim, não é mesmo, Vaclav ?”

“É sim Felicidade. Acho que hoje é o nosso dia de sorte...”

Vaclav e Felicidade, de mãos dadas, levantam-se, atravessam a ampla recepção, e, com o pé direito à frente, adentram a sala 5.

Agora, apenas o correr sereno dos riachos e o sopro de errantes brisas marítimas preenchem o silêncio da sala de espera...

FIM

Conto de Zizifraga

Dezembro de 2006

Notas :

(1) Com 430.000 habitantes, localizada a sudeste do país, próxima à fronteira com a Áustria, é capital e principal cidade da Eslováquia; até 1993, parte da Tcheco-Eslováquia. Hoje, Bratislava conta com universidades, museus, teatros e toda a infraestrutura comum às grandes cidades.

(2) Capital da maior cidade da República Checa, situada às margens do Rio Vitava. Conhecida como a “Cidade das Cem Cúpulas”, é tida como um dos mais antigos e belos centros urbanos da Europa, famosa pelo extenso patrimônio arquitetônico e rica vida cultural. Praga dispõe de uma área de 496Km2, e uma população de 1.300.000 habitantes (Censo de 1989).

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 25/08/2012
Reeditado em 27/08/2012
Código do texto: T3848842
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