Nestes Dias…

Caminhamos os dois bem no meio de uma enorme planície rodeada por montes tão altos que se perdem no meio das nuvens, uma planície que acaba nas margens de um rio, cujas pontes tinham há muito deixado de ter qualquer tipo de utilidade para a função que justificara o seu erguer…

Se por um qualquer acaso se tivessem mantido funcionais, tal de nada serviria, seria um enorme objecto deixado ao abandono, porque as pessoas e as viaturas que era suposto ela servir tinham deixado de a usar há muito, demasiado tempo…

A falta de manutenção aliada à acção da natureza fez o resto, reduzindo a um esqueleto enferrujado séculos de engenharia, séculos de arquitectura, que a tinham originado, mas que eram incapazes de impedir o seu declínio se o criador não velasse por ela…

Para alguém que por ali passasse pela primeira vez, ela era de facto um mero esqueleto de metal, uma estrutura de formas algo abstractas e não o corolário de centenas de anos de melhorias progressivas que tinham resultado naquilo que ela fora…

Claro que ainda havia pessoas, mas quando Tudo começou a acontecer as pontes, mais do que elementos que facilitavam a circulação, eram meros elementos de feroz controle, as pessoas deixaram assim de as utilizar e começaram a atravessar os rios como os seus antepassados, com embarcações ou simplesmente a nado…

Depois, quando o que restava da civilização desapareceu de vez, e com isso os tais pontos de controle, as pontes já estavam de tal ordem degradadas que era mais seguro atravessar o rio pelas formas entretanto improvisadas…

Passaram a servir apenas como memórias distantes daquilo que tínhamos sido nos tempos felizes…

Extinta a capacidade de produção, a humanidade tornou-se meramente colectora dos bens existentes, e quando acabaram esses bens o número de humanos começou a declinar muito rapidamente, devido à fome, ás doenças e aos violentíssimos confrontos entre os diversos grupos que disputavam esses bens, e quanto mais escasseavam mais aumentava o desespero e a violência…

Nesta voragem, o que restava da ciência, da cultura, da tradição, do passado desapareceu por completo, fazendo com que terras férteis não fossem cultivadas, fossem deixadas ao abandono porque se perdera a arte do seu cultivo, fazendo com que terras que poderiam salvar o homem fossem olhadas como perfeitamente inúteis…

Por isso estamos os dois sós numa planície que noutro tempo estaria a fervilhar de imensas culturas e de um exército de trabalhadores.

Em certas circunstâncias um ser humano é e sempre será o mesmo perante elas, mesmo que venha de diferentes culturas, nessas circunstâncias possui os mesmos hábitos e rotinas de sempre, e por isso sabíamos ao vermos pequenos fios de fumo distantes que na base deles estavam humanos que acendiam fogos para se aquecerem e cozinharem.

Mas um elemento tão inocente também significava algo tão sombrio como a rendição final da humanidade…: Quando tudo implodiu, os encontros entre diferentes grupos de humanos passaram a serem confrontos de disputa, de saque pelos bens uns dos outros, e por isso as movimentações desses grupos passaram a serem o mais discretas que era possível, tanto para não caírem em emboscadas como para prepararem e fazerem essas emboscadas… E mesmo quando descansavam os grupos eram discretos para não serem notados, havendo uma ausência total de fogo e o mais possível de ruído.

Com o tempo e com a diminuição progressiva de humanos a violência aumentou ainda mais mas, por paradoxal que pareça, também os riscos de encontro porque éramos cada vez menos ocupando espaços agora imensos pela ausência dos humanos quase extintos…

Por isso estes fogos eram um sinal de rendição, um sinal que preferiam ter menos frio e uma refeição um pouco melhor do que velar pela segurança, preferindo o conforto possível momentâneo do que a sobrevivência a mais longo prazo, como se fosse mais importante viver uma noite do que os dias seguintes, pois esse fogos eram vistos a grande distância e poderiam atrair visitantes nada desejados…

Como se tivessem a consciência de que só iriam viver um pouco mais, e preferindo viver esse tempo o melhor que se podia…

Viver para o momento era um sinal do colapso final, porque o futuro deixara pura e simplesmente de interessar, porque já não se acreditava nesse futuro…

Uns poucos de nós tiveram a percepção verdadeiramente racional do que se passava, e por isso escolheram uma terceira via, não sendo de todo raro ver corpos de gente que se tinha suicidado, porque as opções disponíveis não eram as que desejavam minimamente, o que representava o colapso final dos poucos que ainda acreditavam com todas as suas forças que os tempos antigos poderiam ainda regressar…

A meio deste processo de erosão civilizacional, enquanto ainda existiam cidades, algumas cidades tentaram um esboço da organização perdida, entrando em contacto com as outras cidades procurando assim estabelecer velhas relações, o reatar de velhos laços, pois a sua união seria um garante da sua sustentabilidade individual através do global, na acertada lógica que interesses diversos as separavam, mas o interesse maior de se manterem vivas era o elemento que deveria interessar realmente fazendo passar para segundo plano tudo o resto…Uma união que seria um esboço bem concreto da ainda possível reconstrução…No entanto a semente da divisão que tinha colocado um fim às nações já proliferara de maneira irreparável, e assim as cidades recusaram pequenas cedências em prol do bem global, condenando-se dessa forma…

E assim as cidades que ainda restavam estavam condenadas por serem insustentáveis, porque esses meios só estariam disponíveis na recusada cooperação entre elas, esquecendo que fora tal que possibilitara às primeiras cidades se transformarem em impérios, depois em nações e por fim em uniões democráticas sócias económicas e militares…

O passado que ainda restava na mente dos homens recordava-lhes a amargura do momento presente, um ressentimento pelo desespero actual, esquecendo que o que nos levara ao desastre fora a corrupção dos valores, dos princípios, das regras que tinham permitido a aparente loucura de meras e insignificantes aldeias se terem transformado em impérios que dominaram o mundo…

E tudo começou, o desastre começou no nosso auge, no auge dos dias felizes, em que se caiu na arrogância de se julgar que aqueles dias seriam eternos, e que por isso a regulação desse sistema por parte dos estados eram o obstáculo que nos separava da máxima prosperidade, alegando-se que essa regulação deveria ser feita pelos cidadãos, mas devido ao facto deles serem incapazes de tal, seriam os grupos de cidadãos mais organizados e mais poderosos a fazer tal…Ora esses grupos eram as grandes corporações e o sector financeiro que defendiam tudo menos o interesse desses mesmos cidadãos…E assim em vez de prosperar globalmente as novas regras fizeram prosperar muito poucos lançando a maioria da população na miséria, pois a série de princípios que permitiu a nossa ascensão foi substituída pela primaria lei natural do primado do mais forte, e nós sabemos bem demais quem eram os mais fortes…

A ausência total de uma fidelidade que não fosse ao lucro a todo e qualquer custo, as nações e as suas necessidades passaram a serem meros joguetes, meros elementos de um jogo de tabuleiro que se descartavam consoante os caprichos dos grandes grupos, sendo que se a ruína de uma nação aumentasse a riqueza de uma dessas corporações, deixava-se cair sem qualquer tipo de pruridos essas países e as suas populações, não sendo nada relevante a miséria que eles tinham lançado e muito menos se alguém morria de fome por causa desses jogos, porque as pessoas deixaram de serem pessoas para serem meros dados estatísticos que se alteravam friamente com um simples premir de um botão de um teclado de computador…

Como se não bastasse, entre os cidadãos o espírito de competitividade cega passou a reinar, esquecendo-se o colectivo quase por completo…

E neste cenário era pois uma mera questão de tempo a que tudo viesse a acontecer…

E a maneira como tudo começou era de tal ordem previsível que chegava a vir descrita em manuais, em manuais que descreviam a receita de uma sublevação…Mas como éramos modernos e vivíamos na modernidade revoltas dessas eram coisas primárias que tinham ficado num passado distante e que nunca mais se iriam repetir, esquecendo-se o facto de em condições extremas o ser humano ser capaz dos piores actos e fazer tábua rasa à civilização e à civilidade, porque quando a sobrevivência está em causa de nada nos adiantam todas as leis, porque só prevalece uma, a lei do mais forte…

Tudo começou por uma revolta isolada num bairro empobrecido numa qualquer cidade. Ora revoltas deste tipo eram conhecidas pela sua sazonalidade e prontamente dominadas.

O problema é que a esta revolta se seguiu uma, e mais uma, e mais uma, não já naquela cidade como em imensas mais cidades, num fenómeno que aproveitou os mesmos instrumentos comunicacionais da aldeia global para a destruir…

As revoltas passaram dos bairros carenciados para os bairros mais selectos, não passando pelos bairros da classe média (uma classe que estabelecia a ponte entre os muito ricos e os demasiado pobres, que era um ponto de equilíbrio social, mas que neste sistema desigual fora pulverizada, lançando a maioria dos seus membros para a classe inferior e suscitando ainda mais raiva e ódios há demasiado tempo adormecidos e em perigosa gestação…).

Quando os centros de luxo começaram a arder as autoridades perceberam que tinham em mãos um enorme sarilho, pois não havia forças de segurança que pudessem colocar a ordem na anarquia e nas pilhagens que passaram a dominar a maior parte das cidades…Optou-se então pelas suas congéneres privadas, a quem se tinha concessionado parte da segurança pública que devia ser uma função do estado, mas que na voragem de libertar o estado de toda e qualquer incumbência tinham tornado uma utopia de economistas com tendência para delirar em algo bem real…Essas forças entraram em acção, mas como a sua fidelidade era apenas ao ordenado recebido e não à entidade patronal, mal sofreram mais baixas do que era esperado bateram em retirada, obrigando então ao uso do último instrumento de controle desse mesmo estado: Decretar a lei marcial e colocar as forças armadas nas ruas…

Eram instrumentos de controle de ultimo recurso que tinham resultado nas raras vezes que foram necessários, mas foram utilizados sempre para controlar áreas urbanas algo pequenas e perfeitamente delimitadas e não para cidades inteiras…

E assim de forma inexorável as cidades começaram a cair, e logo a seguir os países dessas cidades. As poucas nações que tinham escapado a esta implosão foram invadidas por multidões de refugiados que procuravam a ordem que tinha desaparecido na sua terra. Mas as multidões superavam em muito os meios necessários para elas, e assim desesperadas essas multidões saíram dos campos em que as confinaram e invadiram as cidades, pilhando estas e lançando essas nações no caos da dos refugiados…

E foi desta maneira que mesmo as mais estruturadas e equilibradas sociedades mergulharam no caos global que entretanto se tornou a regra e não a excepção…

Destruídas ou meramente privadas de trabalhadores e de meios que permitiam a sua sustentabilidade, as centrais energéticas e as refinarias colapsaram, deixando toda a nossa sociedade tecnológica ficou reduzida a nada por ser inviável sem os meios energéticos que deixaram de existir…

E como os veículos que permitiam a dinâmica do nosso mundo ficaram sem combustível ou manutenção, passaram a ser meros destroços inúteis a enferrujar…

E foi assim, de uma forma muito resumida que de produtora a humanidade passou à função pré histórica de ser meramente colectora…

E se de facto tudo é como descrevi, como sei tudo isto?

Porque à imagem dos mosteiros que tinham sobrevivido ao fim do Império Romano e que souberam preservar algum do seu conhecimento, também aqui alguns locais isolados passaram ao lado desta implosão humana, porque éramos demasiado insignificantes ou os saqueadores julgaram não valer a pena o trabalho que teriam para nos pilharem..

No entanto com o esgotar de recursos, os que restaram passaram a ser disputados com a ferocidade que vem do desespero de quem nada tem, e foi assim que tivemos que fugir do local onde tentávamos preservar o que restava do conhecimento humano…

Até poucas horas antes da fuga ainda me mantinha em contacto via rádio com outros locais semelhantes ao meu espalhados pelo mundo, e por isso sabia que o que nos estava prestes a acontecer acontecia por todo o lado, de tal ordem que éramos cada vez menos, com uma natural e infeliz tendência para o desaparecimento…

De quase uma centena de membros a nossa comunidade ficara reduzida a nós os dois, que deixámos para trás os cadáveres dos nossos familiares e amigos mas também o cadáver do que restava da nossa cultura, da nossa história, tufo reduzido a cinzas, a nada…

E assim aqui estamos, nesta planície, numa zona que conhecemos bem, e por isso sabemos que a algumas dezenas de quilómetros à nossa frente está o mar, e para além deste uma ilha, longe da anarquia mas suficientemente perto para lá chegarmos, uma ilha com poucos habitantes mas com meios suficientes para albergar uma população bem maior.

É nessa ilha que pretendemos recomeçar, se tudo correr bem e ela de facto se tiver mantida à margem do colapso planetário…

Nós os dois e estas páginas são, muito possivelmente, tudo o que resta da civilização, do que foi o nosso mundo e do qual não resta quase nada…

Depois de nos estabelecermos na ilha, com o tempo espero descrever detalhadamente tudo quanto temos os dois na memória, o ultimo documento de infinitos documentos produzidos pelo espírito humano.

É pois a esperança demente no recomeço que nos move nestes dias sombrios, numa paisagem que está longe de ser desolada e que até é muito bela, pois como alguns previram em tempos, o colapso da humanidade faria com que a natureza ocupasse o espaço deixado vago por ela, fazendo com que locais como estes tivessem agora uma insuspeita beleza…

E por irónico que pareça, só o cadáver ferrugento da ponte estraga este cenário, pois até a aldeia que albergava os antigos agricultores foi tomada por completo por árvores e pelo mais diverso tipo de ervas, fazendo com que essa aldeia não seja nada mais do que um pequeno bosque com estranhas formas…

Não tenho no entanto grandes ilusões, pois mesmo que sobrevivamos à viagem até à ilha e esta se encontre no estado que desejo, mesmo que trabalhe incansavelmente o resto da minha vida apenas reconstituirei uma fracção insignificante do conhecimento perdido. E se não existirem mais habitantes, os filhos ou filhas que poderemos vir a ter terão que abandonar a ilha, porque a bem da diversidade genética os nossos sangues terão que se misturar com outros sangues…

Talvez depois os nossos descendentes regressem à ilha com as suas famílias e então ai será possível um esboço bem mais preciso do recomeço com que sonho levar a cabo…

Mas o que me separa de tal tem tantos “poréns” pelo meio que o meu sonho pode não vir passar de um sonho jamais concretizado…

Por isso não penso em demasia em tal, procuro não pensar, porque só penso no horizonte de alguns dias sob os quais sei que disponho de algum controlo, porque sei que ao menos esse tempo posso ainda dominar…

Utilizo no entanto esse sonho como um elemento motivacional em alturas em que me sinto abandonado pela fé e esperanças que deixaram de tocar a humanidade, que a abandonaram de vez…

Utilizo esse sonho para não me desiludir de vez perante a suprema burrice que cometemos, a essa espécie de suicídio que poderia ter sido evitado com alguma facilidade se não tivéssemos visto nos ensinamentos que renegamos um adversário mas sim um aliado, porque nos incinerámos quando olhámos para a ética e a moral ou os valores da solidariedade social como relíquias antiquadas que era preciso substituir por novos valores, ignorando que eram essas “relíquias” não eram entraves ao progresso mas sim o sustentáculo deste, porque quando julgámos destruir grilhetas estávamos a destruir a coluna vertebral de toda a civilização…

E assim não penso em nada disto a não ser ocasionalmente, preferindo que vivo não os dias do fim, mas sim os novos dias de uma nova civilização, que vivo um feliz recomeço Nestes Dias…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 04/09/2012
Código do texto: T3864395
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