Trabalhador Rural

Acorda, ainda com o sol por nascer, vencendo o sereno e se enveredando pela noite resistente. A caminhada é lenta e os olhos ainda avermelhados pela noite pouco dormida. Aguarda paciente o coletivo, que aparece iluminado, como uma árvore de natal em movimento, trazendo outros tantos que necessitam estar de pé bem cedo. Cabeça baixa passando pela catraca, rostos sérios nos assentos, todos ocupados. Segura-se na barra de ferro, equilibrando-se nas curvas. Em um sacolejo, repara nas pernas da mulher sentada no meio do ônibus, com abertura do vestido que deixa aparecer a panturrilha morena. Tenta desviar os olhos, mas parece é guiado para aquele pequeno atrevimento de carne. Repara nas roupas bem passadas, sem anel no dedo, provavelmente solteira, mas muito longe da sua realidade.

Agora firma o olhar para outro ponto do coletivo, enxergando uma gari de feições duras. Pensa que ali terá mais chance, embora a aparência não seja das melhores. Logo recebe um olhar de retorno, mas procura visualizar a noite através da janela embaçada. Volta a encarar a mulher de roupa laranja, travando os olhos, imaginando que por baixo daquela roupa de trabalho, poderia haver algo parecido com as carnes morenas da donzela de vestido bem passado. Ao passar por uma lombada, parece ter embaralhado os pensamentos, em uma irresistível imagem da mulher elegante, usando a roupa de gari, revelando aos poucos seus dotes, com seio pequeno, suspendendo a camisa com mamilos ouriçados.

Chega no seu ponto, descendo sem prestar atenção a nenhuma das duas, fitando a calçada suja de merda de pombo. Atravessa avenidas, observando lojas ainda de portas abaixadas, apesar do sol já se insinuar. Senta em um boteco sujo que fica a duas quadras do seu trabalho, cumprimentando colegas de ofício e chamando o dono do estabelecimento. diz um bom dia sussurrado, pedindo em seguida, dois minutos de prosa e dois dedos de cachaça. Um gole e sorveu a bebida, que lhe abre o apetite. Fazendo com que peça como complemento um salgado, que vem molhado de óleo, por mais que se enxugue no guardanapo.

Entra pelos portões da firma. Espera calado até o caminhão chegar. Segue na carroceria, com trancos fortes, poeira no rosto, avançando por estradas de terras, até o desembarque em plantações de cana, onde a foice fala mais alto. As botas esmagam o terreno sem piedade, o sol já castiga a face com rugas precoces. Não se sabe se pelo calor ou por memória insistente. No pensamento, aquela panturrilha morena, com pelos quase imperceptíveis, que sobravam para fora do vestido bem cortado. Passa a mão sobre as calças, ajeitando o órgão, que logo se aquieta, já que é preciso ceifar, pois o pão é ganho a cada dia, a duras penas. Não são as memórias e os sonhos que lhe garantem o modesto pão de sua mesa, mas são eles que o fazem resistir o sofrimento diário, fazendo-se oásis no deserto de esperanças.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 08/09/2012
Código do texto: T3871319
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