Edineide e o sol

Edineide e o sol

Edineide da Cruz veio de ônibus para São Paulo, olhava o sol pela janela e sorria e ele a seguia com mau humor e se afastava sem sorrir ; disseram que o tal ônibus soltava um ar bem fresquinho para cada passageiro, que distribuíam sanduíche e balas, assento-leito pra dormir que ia pra frente e pra trás, nem era rede, televisão para quem tivesse insônia. Nada era verdade, ela pensou em pedir de volta o dinheiro, a cara do motorista não dava nenhuma esperança, olhar grosseiro nas suas costas. O veículo fedia à urina, algo de algum distraído que não houvesse se limpado apropriadamente, crianças choravam, uma delas tinha os olhos que lacrimejavam constantemente sob pupilas brancas, vou tentar o hospital das Clínicas em Sum Paulo, senão ele fica cego de veis, a mãe olhe cobre o rosto com vergonha desse nascimento. Edineide torna a olhar para frente, já viu casos piores de crianças às margens do São Francisco, tão grande o velho Chico, tão grande, o bacuri que dorme esperando a grande balsa atracar, guiado pelo irmão que o cutuca quando os passageiros desembarcam, oferecendo um biju anêmico. Ela abaixa os olhos, está acostumada a abaixar os olhos, baixou os olhos quando Laurindo lhe pediu pra não ir: - É cidade traiçoeira Edineide, a gente pode tentar a vida em João Pessoa, você quer o tal vestido de florzinha e o véu cumprido de noiva, eu compro, a gente tá prometido desde criança, ela responde baixinho que tem que tentar, tem que tentar, outras já foram para o sul, não há de se demorar muito é só o tempo de preparar um enxoval bonito com os apliques de bordado inglês que viu na revista, a moça sorria ao lado do noivo, “que assim, sua felicidade será completa, cara amiga,com enxovais Monte Perene”; Laurindo se afasta, seus olhos se aquietam, ficam ali, boiando na aflição, que desgosto de olhar! Já são seis meses na capital de São Paulo, numa rua tranqüila, seu quarto é tão pequeno, dava pra dormir em pé, o trabalho duro, crianças deixam copos sobre a pia que ela acabou de arear, pedem suco, Edineide, suco, Edineide, atende o telefone, Edineide cadê a minha blusa de miçanga, a porta Edineide, o telefone Edineide, a patroa deu as instruções secamente, não pode usar o tal telefone, roupa sua deve ser lavada em separado, como atender a porta e telefone, cuidado com a prataria, folga de quinze em quinze dias, ir onde nessas folgas, nem conheço ninguém, gosta mesmo é de ir até a rua São Caetano, os manequins de noivas, um mais lindo que o outro, os véus de tule na cabeça, e as coroas então, nossa, que riqueza, se a mãe visse! Conhece Kelly, empregada no primeiro andar que a leva pra um forró, vai lá saber se o seu Laurindo num já tá de chamego com outra s’é besta sô, dança sem vontade, conhece Severino que beija seu cabelo com intimidade e lhe toca os seios com rudeza. Quando a coroa da Nossa Senhora dos Aflitos é quebrada sem querer, perde o emprego em meio ao choro da patroa, que essa gente não tem mesmo vontade pra nada, minha santa predileta, a gente ajuda e elas não reconhecem. Não entende o porquê de não receber seu salário, era experiência, são três meses para ver se serve, como fica a santa quebrada, quem vai pagar, dorme no emprego de Kelly, por hoje tudo bem que você não tem onde cair morta, vou te apresentar ao amigo do Severino, dono de uma boite pros lados da Vila Leopoldina, você é bem jeitosa Edineide, que tal dançar pros homens, se assusta quando Kelly lhe levanta o vestido com malícia, calma muié é só pra ver suas coxas, se dá pra tiar a roupa, nem pensar Kelly, nem vim aqui pra tirar a roupa e se o Laurindo inda mi quiser volto pra Paraiba com meu enxoval e a gente vai morar na cidade, Kelly sorri com descaso, eu também pensava assim minha fia, quando cheguei aqui e é quando o dinheiro escasseia, a esperança esgarça, a tristeza dá nó, o desespero espera, mão estendida, mão encardida, os primeiros dias pra tirar a roupa na frente daquela homarada toda foram um horror, se a mainha visse,ai que vergonha, você se acostuma menina, no fim nem vê o pessoal na platéia, só não deixa chegarem muito perto de você, tem uns que são tarados mesmo, não deixa chegar perto, desce e sobe automaticamente as mãos apoiadas numa haste comprida, os bicos dos seios são pintados de tinta fosforescente, ficam ali volteando, volteando, joga os cabelos para trás, contorce os quadris, os homens acenam e dizem as indecença, ai se mainha visse, Laurindo visse, dorme de dia, no sábado vai pra rua São Caetano, compra um vestido de noiva, as florzinhas de lantejoulas brancas, tão miudinhas e a cauda comprida com a coroa de princesa, dorme cansada, na nave da igreja, tantas flores, tanta gente, Laurindo a espera no altar sorrindo, tá de fraque o Laurindo, ficou tão bonito de fraque, a aflição sobe pela garganta, um grunhido, Laurindo não tem mais rosto, não tem mais rosto: - Edineide, arranja um lugar pra você morar tá, esses pesadelo já encheu, vira-se de lado em silencio, chora baixinho pra não acordar a amiga. Severino lhe oferece abrigo, vai morar com ele num quarto e sala espremido, pros lados da João Mendes. Severino é baixo e feio, uma cicatriz lhe atravessa a face direita e contorce seu rosto quando sorri. Calado, só lhe pede o essencial, o pirão misturado ao feijão, salada de tomate, o ovo por sobre o bife, é o bife à cavalo , dizem ; - Muié minha tem que sê ordera, só isso, Edineide obedece sem pensar, anda cansada e tristonha. No palco, nem sente mais a zoeira que os homem fazem, já se acostumou com as caras intumescidas e os holofotes que diluem o tédio; -Caramba, você é sortuda mesmo, o tal caça talentos da televisão ta procurando moças para dançar nos fins de semana na televisão, seu nome está na lista, quem dera que eu fosse convidada e é aí que tudo muda. Tudo muda porque num de repente, acontecem coisas que até Deus duvida, assim, muda a vida, passarinhos cantam, florzinhas nascem, crianças brincam, velhinhos sorriem, muda a sorte, muda o texto. É descoberta para fazer capa de revista meio pornográfica, como foi o ensaio Edineide, já aprendeu a responder automaticamente: - Foi tudo muito bem, o pessoal é muito profissional , tudo muito artístico, no início não, mas depois fiquei a vontade, freqüenta festas não sabe de quem, pula corda com a sorte e enquanto pula, é convidada para fazer uma programa de culinária, nem precisa saber cozinhar, cozinhar mesmo era a mãe Isaura que fazia broa de milho amarelinha, amarelinha, logo está num programa cheio de moçoilas esperançosas como ela. O programa é de entrevistas do mundo cão, nem tão cão, que cão não fala, vem muita gente por vezes o texto é ensaiado antes, cada pessoa ganha sua cinquentina é citada em revista de fofocas, faz duas lipo e uma plástica para amendoar um pouco os olhos, vive bem, manda vir mainha da Paraiba, vez em quando ainda sonha com Laurindo lhe esperando no altar tão bonito, tão bonito, o rosto some, fica um vazio, vazio, calma filha é só um sonho ruim, chora, chora e, num dia de chuva fina em são Paulo, vai passar pela trigésima vez pela pra rua São Caetano ver os vestidos de noiva, volta pra casa correndo,: Mainha faça as malas, vamos embora minha mãe, vamos embora pra nossa terra, nossa gente, tô tão cansada mãe, cadê o Laurindo, cadê o meu amor , cadê o meu amor, mainha a acompanha entre assustada e feliz, do avião olha o sol pela janela e sorri, ele lhe sorri também, escancarando os dentes amarelos.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 14/09/2012
Código do texto: T3881280
Classificação de conteúdo: seguro