BRAVO GUERREIRO

O eternamente superlotado coletivo já saía do ponto. João, atrasadíssimo para sua colação de grau, precisou correr para alcançá-lo. De pé, espremido em meio à multidão de passageiros, o futuro historiador se deixou levar pelas lembranças. Voltou ao dia em que lera seu nome na lista de aprovados no vestibular da universidade pública. Que vitória! Os olhos marejados da avó Idalina ao receber a notícia... Lamentável que não pôde dividir a alegria com a jovem mãe, que o abandonara quando bebê. Lembrou-se da visita ao pai na penitenciária:

– Pai, eu passei no vestibular! Serei um historiador! O melhor historiador do Brasil!

– Coisa de gente fresca. Culpa de sua vó, que protegeu demais. Pobre criado com mimo só serve pra apanhar sem reagir. Fica covarde. Não vai conseguir nada com isso, rapaz!

– O que não quero é responsabilizar os outros por minha condição social. Não sou covarde, vou batalhar, mas minhas armas não serão as que meus amigos de infância usam lá na favela, minhas armas serão os livros!

– Ah, já está falando como um desses otários metidos a intelectuais. Quem nasce no meio em que você nasceu e com essa aparência não tem chance! Entenda isso de uma vez e não perca tempo com bobagem! Vou demorar a sair daqui, precisa cuidar da mãe, sua vó. Já que não tem jeito pra ser da guerra, então arrume um emprego do seu merecimento e vá sobreviver!

– Vou me formar! Não devia ter vindo aqui.

Nunca mais voltou àquele lugar. Um ano depois, ficou sabendo que o pai fora assassinado, por ter traído companheiros de cela. Outros momentos pesados se apossaram de sua memória: os dias duros de lida na loja, os cochilos, o sono torturante em sala de aula. E quando os malandros da favela implicaram com ele? Obrigaram-no a vender droga na faculdade! Que terror! Custou a livrar-se daquele pesadelo, mas graças ao seu carismático poder de argumentação, conseguiu sair ileso. E nunca mais o importunaram.

Não podia afirmar que não sofrera preconceito na escola. Embora veladas, fora vítima de algumas rejeições. Aliás, no início, sentiu-se discriminado por todos os âmbitos: na faculdade, na favela e na loja. Certa vez, ao oferecer sua casa para a realização de um trabalho em grupo sobre história da arte, sentiu doer-lhe o preconceito. Os colegas compareceram sim, porque ele se destacava em todas as disciplinas, mas não aceitaram sequer um copo com água. Não conseguiam disfarçar o pânico; através da janela, olhavam, assustados, em direção ao beco; depois desviavam os olhares para as paredes mofadas do barraco e endireitavam-se nos caixotes de madeira improvisados como bancos; as meninas pareciam nauseadas. Para encerrar definitivamente o clima desconfortável, João apenas disse:

– Gente, este é o mundo em que eu vivo. Para futuros historiadores, nada é mais valioso que conhecer realidades diferentes de seu contexto.

Os amigos de infância não mais o cumprimentavam e os colegas de trabalho ora o ignoravam, ora o envolviam em intrigas. Mas ele rapidamente superava tais chateações. Focava em seu inevitável triunfo.

E conseguiu! Dentro de alguns minutos, receberia seu diploma! O coletivo, que pareceu atravessar por toda a eternidade, afinal, chegou ao destino. O ponto em que desceu ficava a uma certa distância do lugar onde aconteceria o evento. Tão logo ganhou a rua, ele pôs-se a correr afoito, feito louco, rumo à sua conquista. Corria muito, como se voasse livre, imune aos males da vida! Como um vencedor! Nada mais poderia detê-lo, o mundo o pertencia! Ah, que deliciosa sensação, a da vitória!Corria... Voava... Intensamente feliz!

De repente, um estalido fez-se ouvir! Arma de fogo! Um tiro! Viatura de polícia! Som estridente de sirene! João levou a mão direita às costas. Sangue, muito sangue! Trôpego, sem forças, desacelerou os passos. Insistiu em continuar, estava quase chegando! Cambaleante, arrastava-se pelo passeio. Já na entrada do local da cerimônia, caiu. Com extrema dificuldade, ergueu o braço, tocou a mão ensaguentada na porta, que guardou as marcas de seus dedos trêmulos, tingidos de vermelho. Antes de sorver seu derradeiro quinhão de ar, ainda pôde ouvir a conversa entre os policiais:

– Sargento, este não é o meliante fugitivo!

– Droga! Mas a gente não tem culpa se esses pretos todos têm as caras iguais.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 26/09/2012
Reeditado em 18/12/2013
Código do texto: T3901831
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