'' DONA PROCELA ''

Para mim ela sempre foi assim...velha, desde que eu me lembre eu sempre a chamei de dona Procela...parecia que ela já havia nascido deste jeito envelhecida e ela era bem conhecida na cidade, mas jamais eu a vi andando pelas ruas, e uma só vez, mas uma só vez mesmo, eu a vi cuidando do jardim da casa dela, agora na janela eu acho que já a vi no dia em que nasci...ela colocava uma almofada, deveria ser bem grande pois uma parte ficava dependurada do lado de fora da janela e me lembro...era sempre vermelha e eu e minha amiga Adelia viviamos querendo perguntar para ela se ela lavava a tal almofada ou tinha mais de uma para trocar de vez em quando, ficavamos rindo imaginando o cheiro que a almofada vermelha deveria ter...cada uma!!!

Eu esperava minha amiga Adelia vir da casa dela, ela morava lá no fim da rua e era uma subidona danada, minha casa era bem no alto, eu no portão esperando, ela chegava e lá iamos as duas a pé e como duas tagarelas conversando feito loucas no rumo da escola.

A escola começava oito horas e ao passarmos na casa de dona Procela lá estava ela na janela já naquela hora cedo do dia, o dia começando e ela ali dando bom dia para deus e todo mundo e tambem todo mundo lhe desejava bom dia e todos, mas todos mesmo paravam e lhe davam um dedo de prosa, colocavam a vida em dia, contavam coisas, histórias, estórias, coisas rápidas, outras nem tanto e ela ficava sabendo de tudo o que na cidade acontecia sem nada perguntar.

Parecia que o povo, o povão do bairro e tambem de outros lugares passavam por ali de propósito para com ela conversar, fofocar, contar...menos para caluniar ou defamar, e ela, dona Procela nada da vida dela contava, nunca ninguem ficava sabendo de nada do que acontecia com ela, sabiamos que ela havia nascido naquela casa, se casou e continuou morando ali mesmo, criou filhos e filhas, netos e netas, seu marido morreu, os filhos foram se mudando e ela ficou só naquela casa grande e todos tudo dela já sabiam e ninguem estava interessado em nada dela saber....acho que pensavam o seguinte...

O que teria uma mulher como aquela para contar? e ela tambem parecia que não se interessava em dela contar, mas adorava ouvir e era ver eu e Adelia vindo já sorria e dizia bom dia e eu tagarela já lhe contava que meu cachorrinho tinha ficado doente, que meu pai bla bla...que minha mãe bla bla...que minha avó bla bla bla e Adelia fazendo o mesmo e dona Procela só ouvindo e rindo.

Antes de nós outras meninas e meninos por ali já haviam passado, outros ainda iriam passar e tudo contar, pessoas que iam na padaria, para o trabalho, para a feira...pessoas que na ida não paravam, paravam na volta e ela ouvindo e ligando pedaços aqui, pedaços ali, formava sua conclusão de um assunto e assim ficava sabendo quem morreu, quem nasceu de quem, quem casou, quem vai casar, quem divorciou, quem ainda vai e assim por diante.

Mas dona Procela era um túmulo, ouvia mas não transmitia, era uma bôca chiusa , bôca calada, que só vendo e porisso as pessoas nela confiava e ela não dava palpite e muito menos interrompia quem estivesse contando algo para ela.

E dona Procela fez parte da minha infância, juventude e idade adulta e ela fazia parte da cidade tambem, do bairro nem se fala, era a atração, era o folclore da cidade pequena do interior paulista caipira pirapora....tudo sabia.

Mas havia dois momentos no dia em que ela na janela não aparecia...era logo depois do meio dia, hora que ela a almofada vermelha recolhia, fechava a janela e desaparecia e só voltava a abrir a janela e de novo a almofada vermelha colocar, ali pelas quatro horas e quando ela abria vinha um cheiro de café gostoso de dentro da casa e outra hora era a hora da '' ave-maria'', assim que o sino da matriz dava a primeira badalada das seis horas, ela se recolhia, deixava a almofada vermelha ali na janela dependurada e ia ouvir no rádio a oração do fim do dia e começo da noite, sumia mais ou menos por uma hora e depois vinha fresca e cheirosa, perfumada com água de colônia, dizia ela que era da cidade de Colônia mesmo, que ficava na Alemanha,...eu sonhei com esta cidade muitas vezes de tanto que eu gostava do cheiro, eu tinha, e ainda tenhos estas '' loucuras ''...quando cismo com alguma coisa, sai de baixo!!!

E esta rotina era todo dia de domingo a domingo, alias, dizem que um dia ela confessou para alguem que domingo era o melhor dia para com todos conversar...tinha os que iam na missa das seis, das sete, das oito, das nove, das dez, das onze...iam e voltavam e pela casa dela passava...na ida bom dia e alguma coisa contavam, na volta vichiii!!! quem estava na igreja, com que roupa, bla bla bla...e contavam dos almoços em familia, dos frangos assados e das gostosas macarronadas, das cervejas a mais e muitas coisas mais...incrivel!!!

Mas nem tudo que é bom dura para sempre.

E uma manhã, depois de quase vinte anos que eu por ali passava e muito para ela contava, ela se tornou minha confidente, amiga e conselheira, logo cedo nesta manhã eu indo para o trabalho e passando com o carro bem devagarinho como sempre fazia não vi a janela aberta e muito menos a almofada vermelha caindo para o lado de fora, vi pessoas no portão, na calçada e carros estacionados, havia uma ambulância e estacionei na hora...e fiquei sabendo na hora que dona Procela tinha ido embora desta vida louca para uma outra talvez melhor...chorei, as pessoas choravam, se abraçava, e a noticia correu rápida e rasteira....e a ambulância a levou embora e a casa foi fechada.

O velório e o enterro foi concorrido. Parecia que a cidade inteira estava lá chorando por ela. Parecia não, dizia a noticia no jornal no dia seguinte...estavam todos por lá, foi o dia todo aquela fila, a noite tambem e na manhã seguinte chovia, parecia que até o céu chorava, e pronto...mais uma vida que se acabou. Fim

Fim? que fim que nada!!!

Foi o começo do estopim que fez a bomba explodir.

Dias depois, acho que foi no dia da missa do sétimo dia, a filha mais velha de dona Procela foi abrir a casa , arejar e limpar para 'a venda colocar, iriam vender e foi quando ela deparou com uma bruta surpresa e a cidade tambem quando ficamos sabendo que a danada da dona Procela, a que pouco falava mas muito ouvia e tambem muito '' escrevia ''...havia nestes anos todos em que ficou na janela ouvindo, sabendo e anotando, escrevendo tudo que houvia...

Naquelas horas de seu descanço, do meio dia 'as quatro, ia para dentro, comia e escrevia tudo que tinha ouvido pela manhã, anotava tudo tim tim por tim tim...voltava, ouvia e de noite ficava acordada até tarde escrevendo...que danada!!!

Não escrevia nomes reais, trocava, mas quem lia sabia, e a filha lia e ria e dizia...'' eu conheço esta...eu conheço este '' e com a ajuda de um amigo jornalista começou a ajuntar tudo aquilo e dizia que iria um livro publicar...pra que falou isto? a cidade ficou em polvorosa, em pé de guerra e a coisa foi parar na delegacia, nos jornais e até no tribunal...ganhou a causa a filha xereta inchirida de meia tijela.

Publicou o livro, em dois volumes, que anda por ai fazendo carreira e ela se '' empaturrando '' de grana com a vida dos outros...eu não comprei, peguei emprestado o primeiro volume na biblioteca, magina que eu ia gastar dinheiro para saber tudo que eu já sabia...mas minha mãe me dizia...

Amélia, ela começou a anotar antes mesmo de voce nascer...

Fiquei curiosa, queria ver se tinha coisas de minha avó e mãe por lá....tinha, e tambem das mães das minhas amigas, pais e avôs...cada coisa!!! apesar dela não ter colocado nomes, sei quem são, afinal segredos nesta cidade pequena não se tem...alias, tem sim e se conta, conta e reconta..e de mim tem desde o dia que eu nasci até um dia antes dela morrer, mas querem saber de uma coisa com sinceridade?

Gostei do que de mim ela escreveu...é tudo verdade.

Sem tirar nem pôr...ela não aumentou e muito menos diminuiu nada....amei!!!

-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=-
ps...nem eu, nem Adélia, nem a cidade, ficamos nunca sabendo o fim da famosa almofada vermelha...se foi sempre a mesma, se ela trocava ou não...mas minha mãe, curiosa, perguntou para a filha de dona Procela e ela respondeu que ela só conhecia uma almofada vermelha desde que ela nasceu....eu e Adélia nos olhamos, rimos e ninguem entedeu nada, só nós duas mesmo...e Adélia para completar colocou um dedo embaixo do nariz...entendi e tive que sair de perto de todos, ela tambem, riamos feito duas bobas, duas tontas...ficamos imaginando o cheiro e minha mãe querendo saber e dizia no final...'' ela , dona Procela , era muito limpa e aceada...decerto lavava, passava e engomava ''...paramos de rir na hora.




AMELIA BELLA
Enviado por AMELIA BELLA em 29/09/2012
Reeditado em 03/10/2012
Código do texto: T3906806
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